Por JOSE J. CAMARGO (*)
Os progressos tecnológicos experimentados pela
Medicina nos últimos 50 anos foram mais expressivos do que em toda a história
da humanidade. Um avanço puxando outro, acelerou de tal maneira o
desenvolvimento que só não nos surpreendemos mais porque estamos indo junto com
a mudança. E mais do que em qualquer outra época, o conhecimento de outras
áreas foi absorvido pela Medicina, com resultados extraordinários. Quando a
NASA precisou desenvolver tecnologia para acompanhar os batimentos cardíacos
dos astronautas, estava, sem dar-se conta, plantando as bases do moderno
monitoramento em terapia intensiva, presencial ou a distância. A descoberta do
Raio Laser revolucionou uma das áreas mais fantásticas da Medicina moderna: a
da imagética.
A Medicina Nuclear e a interação com a RNM
permitiram o mapeamento cerebral, com a determinação precisa de cada função
específica. Os transplantes, vistos como provavelmente a mais arrogante das
iniciativas médicas, porque não sabendo mais o que fazer com um órgão doente, se
dispôs a simplesmente trocá-lo. E o futuro próximo prevê a produção
laboratorial de órgãos imunologicamente inertes, o que multiplicará os
benefícios desse prodigioso avanço.
Os laboratórios de simulação, permitindo o
treinamento do estudante sem o risco da iatrogenia, constituíram-se rapidamente
num recurso indispensável nas melhores escolas médicas do mundo.
O desdobramento do genoma, que no futuro muito
próximo permitirá prevenção, diagnóstico e tratamento da maioria das doenças,
se constitui numa das áreas tão céleres do conhecimento médico e se diz que, a
cada 18 meses, metade do conhecimento se renova.
Os laboratórios virtuais, com programas fantásticos,
têm permitido o tratamento de problemas psiquiátricos como fobias e dores
fantasmas.
Com todos estes avanços tecnológicos, temos
enfrentado o constrangimento de pacientes idosos, sempre os mais carentes,
falando com nostalgia dos médicos de antigamente, o que coloca, como
obrigatória, a seguinte questão: assumindo que paciente infeliz significa
médico equivocado, onde, nesta trajetória de tantas conquistas, nós perdemos o
rumo?
Não podemos negar que a nossa atividade envolve um
conflito de atitudes: de um lado, a ansiedade do paciente com psiquismo
fragilizado pela doença e do outro o médico cumprindo a rotina do seu trabalho.
E a rotina, como se sabe, não é o melhor estimulante das relações humanas. Para
que a empatia se produza é indispensável que o médico se coloque no lugar do
doente e tente pensar como um deles. Quem já esteve do outro lado descobriu na
própria pele o quanto paciente precisa se sentir especial.
Por isso, muito cuidado ao se aproximarem de
pacientes que sofrem, porque eles estarão com todos os sensores ligados e
absolutamente intolerantes à desconsideração com seu sofrimento. Poderão
esbravejar ou suportar a desconsideração, de acordo com sua humildade e
subserviência, mas em nenhuma circunstância eles esquecerão. Nós, médicos,
estamos desatentos aos princípios básicos da relação humana mais elementar, que
só se sustentará se lá no início houver um mínimo de solenidade, que inclui,
entre outros rudimentos, a preocupação com a identidade do paciente.
Considero que o médico, não importa o quanto
atribulado, precisa desenvolver métodos de autoavaliação do seu trabalho. Uma forma
que utilizo com frequência é perguntar àqueles que passaram por situações
estressantes o que foi o mais inesquecível. Utilizem esta estratégia e vão
ficar deprimidos ao constatar que muitas vezes os pacientes consideram
inesquecível uma vivência que nem percebemos. Uma constatação inegável: a nossa
atividade é um jogo de sedução e conquista. Sendo assim, é constrangedora a
percepção de que os maiores atropelamentos afetivos têm como origem a carência
de um pré-requisito básico para ser médico: gostar de gente.
Há 30 anos ser médico era certeza de afirmação
profissional e pessoal, porque havia poucos médicos. Uma década depois, com o
aumento de profissionais disponíveis, passou-se a exigir qualificação técnica
e, por fim, com o mercado repleto de qualificados, a disponibilidade de afeto
passou a ser um atributo para a seleção de médicos, sempre que nos fosse dada a
chance de escolha. Todos então aprenderam que entre dois médicos igualmente
treinados, sempre prevalecerá o mais afetivo.
Os profissionais que não entenderem esta obviedade
estarão condenados a engrossar as fileiras do grande e triste batalhão dos
“injustiçados profissionais”. Os mal humorados, os rígidos e os mal amados
poderão, no máximo, ser tolerados pelos pacientes, por falta de alternativas,
mas não conhecerão uma das grandes maravilhas da Medicina de qualquer época: a
alegria de ser escolhido pelo paciente.
A Medicina é a arte de ouvir e ela só consegue ser
praticada por quem sinta prazer em aliviar sofrimento. O professor Carlos
Grossman, um emérito mestre de três gerações de clínicos gaúchos, costuma, ao
listar os pré-requisitos para formação do verdadeiro médico, referir que ele
precisa ter “cabeça aberta, coração generoso e a bunda. Porque, quem não tiver
bunda para sentar e ouvir o que o paciente tem para dizer, devia fazer outra
coisa”.
Outro conceito importante: a doença é uma abstração
da realidade e ela está nos livros, nos laudos radiológicos e nos exames
anatomopatológicos, e não na atitude do paciente, porque a visão da doença para
o doente é a percepção do sofrimento. E como o sofrimento não é padronizado,
cada pessoa tem seu jeito próprio de sofrer e o médico tem obrigação de
penetrar neste sentimento. Portanto, não cometam o absurdo de antecipar o que
pode acontecer de ruim. Ninguém se prepara para o sofrimento. Pelo contrário:
as vítimas dessa desinteligência atroz apenas sofrem antes e mais. Desta
observação se depreende que não há possibilidade de exercício médico sem
sensibilidade e empatia. A incapacidade de colocar-se no lugar outro é
certamente a maior exigência da atividade clínica.
É nossa responsabilidade profissional preservar a
relação médico/paciente, que vem sendo progressivamente deturpada pela presença
de inúmeros atravessadores, os tais auditores e gestores, que desprovidos de
qualquer vínculo afetivo com o paciente, com frequência se arvoram do direito
de determinar aos médicos qual a melhor estratégia para viabilizar
economicamente o negócio, mesmo que as diretrizes ignorem o paciente, como se
ele não fosse a razão maior de existir todo o sistema.
A relação médico/paciente deve ser vista, na sua
essência, como um encontro generoso entre duas pessoas: um paciente que tem um
problema que o aflige e um médico qualificado para ajudá-lo. Numa relação de
confiança integral, o médico tem que passar a certeza de que saberá o que é
melhor para o paciente e, quando não souber, visto que ninguém é onipotente,
saberá quem saiba.
O que não podemos permitir, sob hipótese alguma, é
que burocratas descomprometidos afetivamente deturpem a relação humana mais
intensa e aguda que se pode estabelecer entre duas pessoas, que eram
desconhecidas, até que uma delas adoeceu.
O temor da morte e a existência de alguém que possa
ao menos postergá-la explica porque, mesmo com tudo o que se tem dito para
depreciar a figura do médico, sempre haverá no imaginário do paciente,
desarmado de toda a malícia, um lugar para a veneração respeitosa que tantas
vezes beira à idolatria.
Se este sentimento puro e comovente que brota da
população mais simples for acrescido de uma manifestação de igualdade, ainda
haverá uma multiplicação de afetos, porque esta fusão, igualdade e
generosidade, é a maior usina geradora de gratidão. E então nós, professores,
precisamos definir que médicos devemos formar. E quando nos questionarem para
onde vamos, devemos responder: vamos pelo caminho da competência técnica
máxima, em direção à solidariedade incondicional, convencidos de que não
estamos aqui para sermos meros coadjuvantes, mas sim para fazermos a diferença
na vida das pessoas.
E então, para finalizar, eu tenho uma revelação aos
inúmeros jovens que estão começando esta nobre caminhada, e que deverá ficar
entre nós, como um segredo: QUE PROFISSÃO
MARAVILHOSA ESTA EM QUE NOS METEMOS!
Mas a Medicina só se completará se for exercida no
limite da paixão e entendida como um contínuo e inesgotável exercício de afeto,
de solidariedade, de empatia e de compaixão.
(*) Professor de Cirurgia
Torácica da UFCSPA – Porto Alegre. Pioneiro em Transplante de Pulmão na América
Latina. Membro Titular da Academia Brasileira de Médicos Escritores Membro
Titular da Academia Nacional de Medicina.
Fonte: Internet (circulando por e-mail e i-phones).
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