Por José Jackson Coelho Sampaio (*)
Iniciava minha
carreira de psiquiatra e desenvolvia as primeiras experiências de pesquisa em
Saúde Mental e Trabalho, com estudos psicossociais sobre o drama das mulheres
castanheiras, quando, certa tarde, sou instado a atender pedido de conversa por
parte de professora de Antropologia da UFC, que havia iniciado
mestrado na UnB. Uma mulher alta, morena, longos cabelos negros e grandes
brincos ocupou o consultório com voz rouca, risada franca e curiosidade
intelectual ilimitada. Era Simone Simões Ferreira Soares.
A conversa foi
um terremoto que marcou minha história. Discutimos as teorias
sobre loucura e estigma e ela demonstrou conhecer meus artigos nas
Revistas O SACO e Rádice sobre doença mental e pobreza, migração e tarefa
exaustiva. Daí, centramo-nos nas castanheiras, responsável por 3% da População
Economicamente Ativa (PEA) feminina cearense e 35% do atendimento em nossa
emergência psiquiátrica, sob diagnóstico polêmico e complexos conflitos com a
perícia médica.
Simone
desenvolveu sua proposta de dissertação de mestrado sobre o tema do estigma e das estratégias de sobrevivência,
pensando como campo as demandas de licença-saúde das castanheiras, em trabalho
sob a orientação do grande Roberto Cardoso de Oliveira, que aceitara orientá-la
e autorizara a busca de um orientador de campo, e ela e ele solicitavam que eu
assumisse este papel, mesmo conscientes de eu ainda não ter titulação acadêmica. Assumi e acertei, pois seu trabalho
alcançou sucesso intelectual e político ímpar.
Passamos a
conviver entre os vinhos e as
cervejas que ela
gostava de beber na varanda de sua casa, as minhas noites profundas de sono que
ela interrompia para apresentar "só mais uma dúvida, outra questão",
a parceria do gosto poético, a solidariedade entre nossas famílias que se
divertiam e se respeitavam, os cartões dela recebidos em cada aniversário meu.
Estivesse ela ou eu onde estivéssemos, a generosidade de Simone acontecia. Os
temas de conversa foram evoluindo, entre chistes sobre sua concepção de liberdade e seus enormes brincos (certa vez,
ofereci-lhe um aro de bicicleta para que ela fizesse brinco), mas agora, sei,
com uma tristeza terna, que em meu próximo aniversário não haverá mais o cartão
de Simone na caixa de correio, nem seu chamado insone ao telefone, nem sua
risada feliz.
(*) Professor titular de Saúde Pública e
ex-Reitor da Uece.
Fonte: Publicado In:
O Povo, de 26/04/2023. Opinião. p.21.
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