quinta-feira, 13 de abril de 2023

AS MEMÓRIAS NÃO TRAEM

Por Carlos Roberto Martins Rodrigues Sobrinho (Doutor Cabeto) (*)

Ao reler "Gente Pobre", de Dostoiévski , vi-me com 13 anos, numa casa simples em Messejana. Havia um caixão na única sala da casa e muita tristeza. Era a mãe de um amigo, que não vejo há tempos. A casa tinha somente um cômodo. Sentamos eu, ele e dois outros amigos de infância, os quais faleceram há pouco mais de um ano, infelizmente, juntos como nasceram, vítimas da Covid. Velamos o corpo durante toda a noite. Tudo só não foi pior devido à solidariedade dos vizinhos, que abrandavam a cada instante a sensação de solidão e desespero. Era para nós como se fosse o fim!

Quase uma década depois assisti a morte do meu pai, da dor no peito ao edema pulmonar e, enfim, à morte, foram pouco mais de duas horas. Tudo aconteceu tão rápido, mas com imagens claras. Ele estava sereno, apesar do intenso desconforto, pela sudorese e falta de ar. Pouco antes de perder a consciência, disse-me com os olhos que estava na hora e nada devia ser feito. Assim aconteceu...

Durante muitos anos essas imagens me retornam, assim de um jeito tão atual, que me traz a mesma sensação.

Na época já era quase médico. Ainda não imaginava que com o passar do tempo iria presenciar tantas cenas como aquela. De qualquer forma, ficou um pedaço da minha alma, ali!

Ser médico é assim, vamos acompanhando e somando nossos mortos.

Não é de todo ruim, já que nos permite uma vida diferente, uma percepção de valores que transcende o tempo em que vivemos, e, deixa claro a nossa finitude.

Encarar o sofrimento humano é cada vez mais agudo. As lembranças de cada casa que visitamos, dos olhares de desespero e da dor, nos traduz a história humana e suas múltiplas contradições. Da alma capaz de alegrar-se e sofrer ao mesmo tempo. De sorrir quando a dor interrompe, em cada ato. No dizer "Dr. quero viver mais um pouco, para meus filhos criar, quero ver meus netos", o último resquício de esperança.

Assim, instauramos nossa, ou pelo menos a minha e de alguns, angústia com o sofrer. E como adormecer em paz?

Agora entendo o que dizia meu avô, José Martins, "descansar, somente na eternidade". 

(*) Médico. Professor da UFC. Ex-Secretário Estadual de Saúde do Ceará.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 27/02/2023. Opinião. p.19.

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