Por Cláudio Ribeiro (*)
Acervo do último cinema de
bairro de Fortaleza é assumido oficialmente pela cultura estadual. Seu Vavá,
criador da sala de projeções no Parque Araxá e "fazedor" de outros
cinemas em várias cidades, faleceu em 2022. Seu sonho era ainda poder reativar
o Cine Nazaré
Imaginar aqui, livremente, o
roteiro da despedida, do último cinema de bairro de Fortaleza. O percurso feito
por esta coluna aos pequenos recortes da rotina da cidade celebra o último ato,
apenas físico, do Cine Nazaré, a sala de exibições de filmes do bairro Parque
Araxá. Que existiu por mais de quatro décadas, num sonho corajoso, obstinado, e
também poético, construído por seu Vavá (Raimundo Carneiro de Araújo, que
faleceu em 2022 aos 91 anos de idade
O imóvel, de 295,68 m², na rua
Padre Graça, nº 65, recebeu a placa de venda. Após a morte de seu Vavá, as
filhas decidiram oferecer o prédio a quem interessar possa. Fica a menos de
meio quarteirão da avenida Bezerra de Menezes. Segundo a corretora, há algumas
avarias, que são recuperáveis. Mas o desfecho dessa história também tem um
vento de reconhecimento ao que representou o Cine Nazaré. Não será uma cena
final. Já há uma sequência garantida desse “filme” em andamento, em outro
espaço.
CENA 1
> Som de fundo com uma
trilha antiga, ideia de nostalgia. Câmera percorre a fachada lentamente. Mostra
a placa da rua Padre Graça, no Parque Araxá.
Aplica-se um efeito para caracterizar a cena como envelhecida. Via de pouco
movimento, pessoas passando na calçada em frente. Uma mulher usa uma sombrinha
para o sol forte, outras duas carregam compras. Um vizinho observa qualquer
coisa e espera fofoca. O vira-lata se coça na sombra do poste. Calmaria
inabalável.
> Duas palmeiras jovens
demarcam a entrada principal do imóvel de número 65, que é o personagem
principal. Cine Nazaré. (Em outra época, ali
lotava. Três sessões por tarde/noite, gente interessada em assistir a clássicas
produções do cinema italiano, francês, brasileiro. Exibições feitas em
projetores de 8, 16 ou 35 mm. Era início dos anos 1970. E foi assim por mais de
quatro décadas.)
CENA 2
> Cena volta para os
dias atuais, sai o efeito de imagem envelhecida. Câmera direciona para uma
portinha no lado direito do prédio (simetricamente, havia outra porta do lado esquerdo, foi fechada
com tijolos). A placa diz: “Conserta-se calçados. Seu sapato velho ficará
novo”. Mostrar seu Bené (Raimundo Benedito Rodrigues), de 91 anos. Ele é o
inquilino do ponto desde 2009. Hoje sapateiro para aumentar o ganho do mês, já
foi chefe de refrigeração, porteiro e zelador de cinemas tradicionais da
cidade, como o São Luiz, Diogo, Fortaleza e Jangada. Trabalhou 29 anos no Grupo
Luiz Severiano Ribeiro.
> Câmera mostra Bené
encostado de pé em sua porta ou no balcão, à espera de algum cliente. O chapéu lhe esfriando o rosto daquele sol de meio-dia. Ao lado
dele, uma máquina grande de fazer pipoca, original de sala de cinema (comprou
para revender, pede R$ 600). A câmera parte dele e segue para uma tomada
lateral de toda a fachada. Bené sabe que só ficará por ali por mais algum
tempo.
CENA 3
> Novo enquadramento,
frontal, mais aberto. Mostrar “a cara” do prédio. O branco da fachada está
sujo, pedindo repintura. Fecha para mostrar o letreiro desgastado. Tomada
fechada no nome do lugar, “Cine Nazaré”. Letras graúdas, a tonalidade quase
apagada, precisando ser renovada de cores. Havia uma luminária, foi arrancada.
O portão principal de acesso, de chapa de ferro, é um amarelo ouro, está
pichado, tem pontos de ferrugem. Mostrar a tranca, um cadeado pequeno, frágil.
O interior do prédio está vazio no andar de baixo. (No andar de cima, há quatro quitinetes,
ainda ocupadas com moradores. Tanto eles como seu Bené deverão ser despejados,
logo surja um novo proprietário).
CENA 4
> A tomada em movimento
lento direciona para as duas placas fixadas em dois basculantes no alto da
fachada. Nelas, o mesmo número de telefone (98826-6013) e o anúncio a quem
interessar possa: “Vendo”. Segue a trilha sonora saudosista. A imagem enquadra o prédio e se distancia
lentamente - volta o efeito envelhecido da cena. Destaca o tom de despedida. A
tela vai escurecendo e… reabre, numa trilha e imagem mais atual, límpida,
mostrando detalhes da nova Sala de Cinema Seu Vavá, num espaço inaugurado em
2024 dentro do Cineteatro São Luiz, no Centro de Fortaleza.
CENA 5 - FINAL
A nova tomada da câmera
percorre o ambiente da Sala Seu Vavá. Ideia é mostrar tudo o que já esteve em
funcionamento no antigo Cine Nazaré. Cena inicial mostra um projetor de 35 mm
antigo, em funcionamento. Num contraluz, o rolo de filme gira exibindo cenas de
clássicos italianos, franceses e brasileiros ainda dos anos 40. Também
projetores de 8 mm e 16 mm. O público senta em poltronas vermelhas, 45 assentos de estofamento confortável (são
originais do primeiro São Luiz, inaugurado em 1958, que haviam sido recuperadas
e reaproveitadas por seu Vavá). A sala tem a magia de um passado recente. Ali o
Cine Nazaré está reavivado. E a cena continua até aparecer o letreiro clássico
surgir diferente: “(Não é um) Fim!”.
***
A aura poética do lugar, e
também o mobiliário, o maquinário e outros objetos do acervo de Seu Vavá já
estão com a restauração e preservação garantidas, assumidas pelo poder público.
Nesta sexta-feira, o Instituto Dragão do Mar (IDM), que atua ligado à Secretaria
Estadual da Cultura (Secult), recebeu oficialmente todo o conjunto de
equipamentos e filmes e pertences do trabalho de seu Vavá. A organização social
gestora dos cines São Luiz e Dragão do Mar já estava de posse do material desde
janeiro. Foi assinado um termo de comodato entre a presidente do IDM, Rachel
Gadelha, e a filha mais nova de seu Vavá, Iris Machado, representante desse
espólio. O contrato é válido por dez anos, renováveis por mais uma década. Sem
ônus, com a obrigação dos gestores culturais zelarem os itens. Para exibições e
exposições, sem finalidade lucrativa.
Conforme o termo assinado, a
lista doada tem os seguintes itens: “um projetor manual de 35 mm; um projetor
analógico de 8 mm; um projetor analógico de 16 mm; um projetor analógico de 35
mm; Lentes de Projeção Cinematográfica; 78 letras em acrílico, em tamanho
pequeno e médio, para uso em letreiro de cinema; uma cadeira de madeira,
remanescente das cadeiras do Cine Nazaré; 45 poltronas de cinema acolchoadas,
de madeira envernizada e estofado na cor vermelha; 150 estojos contendo rolos
de filmes de 8 mm, 16 mm e 35 mm, cujas condições de uso serão verificadas
posteriormente; duas cornetas (alto-falantes); um voltímetro; 15 fitas VHS;
oito livros de teor técnico; uma cartela de ingressos de cinema”.
***
Seu Vavá tinha nove para dez
anos de idade. Passava ao lado do Cineteatro São José, próximo ao Seminário da
Prainha, quando viu, pela fresta da janela uma tela de cinema pela primeira
vez. Era um faroeste, as imagens de cavalos atravessando a parede. Foi
encantamento à primeira vista. Rapazote, nos seus 16 anos, virou um faz-tudo,
de porteiro a gerente, do Cine Familiar, sala mantida pelos padres capuchinhos
que funcionou por alguns anos na praça do Otávio Bonfim. Depois de muito
trabalhar para outros, e quando os frades precisaram demiti-lo porque o Cine
Familiar acabou, recebeu os direitos trabalhistas teve o estalo de abrir seu
próprio negócio. Comprou o imóvel e montou o Cine Nazaré, em 1970.
Especializou-se como um
autodidata, tinha as técnicas e macetes e virou um “fazedor de cinemas”. Porque
era contratado para montar salas de projeções pelos cafundós afora. Percorreu
várias cidades do Interior cearense, Nordeste e Norte do País. Chegou a ser
chamado até para abrir um cinema no garimpo de Serra Pelada, na década de 1980.
Os filmes de lá eram os pornôs e chanchadas - mas isso não era ele que definia.
Tantas viagens, vivia longe de casa por isso. Ele fora vários meses ou semanas
do ano, e dona Maria, sua mulher, cuidava das três filhas e chegou a
administrar borracharia, marmitaria e escola de datilografia. “Minha mãe foi
uma heroína”, conta Iris. Ela morreu em março de 2017.
(*) Jornalista de O Povo
Fonte: Publicado In: O Povo, de 5/10/24. Cidades. p.16.
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