Por Cláudia Leitão (*)
O fogo e o relato é o título dos ensaios de Giorgio Agamben sobre o
lugar da arte e do pensamento como estratégias de sobrevivência. Neles, ética e
política, arte e criação emergem da tensão entre o fogo (mistério) e o relato
(história). Agamben toma a literatura como alegoria para pensarmos a humanidade
e seu afastamento cada vez maior do mistério, simbolizado pelos ensinamentos
ancestrais sobre o fogo, ou melhor, pela vocação poética e mítica dos seres
humanos.
Gaston Bachelard, ao escrever A Psicanálise do Fogo, reflete sobre
o que denomina de "complexo de Prometeu", observando que "se
tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente se
explica pelo fogo. Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de
receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele
brilha no Paraíso, abrasa no Inferno. É doçura e tortura. Cozinha e
apocalipse." Há nos dois filósofos uma comprensão comum de que o fogo é um
ser ao mesmo tempo natural, social e cultural.
O domínio do fogo simboliza o a sociedade industrial, mas o que
primordialmente se conhece sobre o fogo é que não podemos tocá-lo. O Brasil
arde. As chamas da Amazônia, do Pantanal, das fazendas do interior de São Paulo
cobrem de fumaça as cidades brasileiras. O que dizer, em meio à poluição do ar
e à morte dos seres vivos (humanos e não humanos) sobre o "complexo de
Prometeu"? Segundo Agamben, "só podemos ter acesso ao mistério por
meio de uma história e, todavia, a história é aquilo em que o mistério apagou
ou escondeu os fogos". Triste dilema. Um incêndio determina um incendiário
quase tão fatalmente quanto um incendiário provoca um incêndio. Bachelard
insiste que o fogo se propaga mais seguramente numa alma do que sob as
cinzas.
A tenacidade e a insaciabilidade crescentes do fogo mostram
monstruosamente que a existência humana, tão rica em possibilidades, vem
perdendo o mistério e apagando, uma a uma, suas fogueiras/devaneios. Sobra-nos
o relato, a história desencantada. Tornamo-nos, como as cinzas, os excrementos
do fogo.
(*) Cientista Social. Professora da Uece. Sócia da Tempos de Hermes
Espaço Criativo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 2/09/24. Opinião. p.18.
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