Paulo Elpídio de Menezes Neto
(*)
Severino, da Maria do Zacarias,
faz esse lamento, posto diante dos desafios de abrandar pedras que o destino
lhe oferece. Severinos são “iguais em tudo na vida“: “é que a morte severina /ataca
em qualquer idade/e até gente não nascida”. A poesia e o romanceiro nordestino
são o registro mais veemente na amargura e no fatalismo dos personagens de uma
trama secular. História trágica a que se mostraram alheios e indiferentes a
proteção divina, sempre invocada pelos Severinos em sua crédula esperança, e os
homens de poder em sua dissimulada retórica de promessas consentidas. João
Cabral moldou, em um poema ácido, duro na extração do pouco de vida restante no
corpo da morte marcada dos homens, a imagem de uma imensa tragédia.
Pedro II prometeu empenhar a
última pérola de sua coroa para combater as secas do nordeste. Max Fleuiss,
historiador e cronista, descobriu, entretanto, em suas bisbilhotices pelos
arquivos do II Reinado, que as despesas do famoso baile da Ilha Fiscal correram
pela verba classificada como “Obras das Secas do Ceará”. Mais de 20 secas foram
registradas desde 1606 até a deste ano. Pedro II criou uma Comissão dita das
Secas, denominação, logo emendada para Comissão dos Açudes. Passou a Instituto
de Obras Contra as Secas, em 1909; em 1915 voltou a tratar de açudes. Criou-se,
em 1915, um Campo de Concentração do Ceará, onde se mantinham, caridosamente,
os flagelados.
De Iocs o órgão passou a
chamar-se Ifocs, depois Dnocs. Vieram a Codeno, a Sudene e o BNB. A Sudene,
extinta, virou a Adeno. Uma alegre sucessão de siglas manipuladas por
políticos, proprietários rurais e governadores.
Os cronistas das secas falam da
construção de açudes em terras e domínios de particulares. Criaram-se
municípios nos limites familiares de terras, muitas delas improdutivas.
Estradas vicinais foram abertas entre fazendas de uma mesma grei de fazendeiros
assinalados. Políticos e proprietários tomaram empréstimos em bancos oficiais,
em condições nada severinas. Frentes de trabalho, recursos federais, incentivos
e renúncias fiscais drenaram, anos a fio, recursos da fazenda pública para a
fazenda privada. Os projetos para aproveitamento das águas estancadas nos
reservatórios particulares e nos públicos para irrigação das terras de plantio
e de criação foram vistos com desconfiança pelos fazendeiros e criadores.
Tantos Severinos com colheita firme e garantida poderiam despertar cobranças
abusadas e insatisfações ameaçadoras.
Quatrocentos anos depois,
repete-se a caminhada secular dos Severinos. Na terra calcinada, nos
descaminhos das obras públicas, surge a obra faraônica, anunciada aos ventos e
aos eleitores incautos, com os seus canais degradados, pelos quais haverá de
correr, um dia, a água do Velho Chico para molhar as terras encarquilhadas dos
muitos Severinos desesperançados.
Em entrevista realizada no
interior do Ceará com um velho e rude vaqueiro, perguntamos-lhe o que a Sudene
significava para ele. Respondeu-nos, com a ingenuidade amarga dos simples:
“Doutor, a Sudene é uma caminhonete Rural, com dois ‘filhos-de-uma-égua’ na
boleia, andando pra cima e pra baixo”.
(*) Cientista político e membro da Academia
Brasileira de Educação
Fonte: O Povo,
6/02/13. Opinião, p.6.
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