Por Olavo de Carvalho,
Se há uma coisa que, quanto mais você perde, menos sente
falta dela, é a inteligência. Uso a palavra não no sentido vulgar de
habilidadezinhas mensuráveis, mas no de percepção da realidade. Quanto menos
você percebe, menos percebe que não percebe. Quase que invariavelmente, a perda
vem por isso acompanhada de um sentimento de plenitude, de segurança, quase de
infalibilidade. É claro: quanto mais burro você fica, menos atina com as
contradições e dificuldades, e tudo lhe parece explicável em meia dúzia de
palavras. Se as palavras vêm com a chancela da intelligentzia falante,
então, meu filho, nada mais no mundo pode se opor à força avassaladora dos
chavões que, num estalar de dedos, respondem a todas as perguntas, dirimem
todas as dúvidas e instalam, com soberana tranqüilidade, o império do consenso
final. Refiro-me especialmente a expressões como “desigualdade social”,
“diversidade”, “fundamentalismo”, “direitos”, “extremismo”, “intolerância”, “tortura”,
“medieval”, “racismo”, “ditadura”, “crença religiosa” e similares. O leitor
pode, se quiser, completar o repertório mediante breve consulta às seções de
opinião da chamada “grande imprensa”. Na mais ousada das hipóteses, não passam
de uns vinte ou trinta vocábulos. Existe algo, entre os céus e a terra, que
esses termos não exprimam com perfeição, não expliquem nos seus mais mínimos
detalhes, não transmutem em conclusões inabaláveis que só um louco ousaria
contestar? Em torno deles gira a mente brasileira hoje em dia, incapaz de
conceber o que quer que esteja para além do que esse exíguo vocabulário pode
abranger.
Que essas certezas sejam ostentadas por pessoas que ao
mesmo tempo fazem profissão-de-fé relativista e até mesmo neguem
peremptoriamente a existência de verdades objetivas, eis uma prova suplementar
daquilo que eu vinha dizendo: quanto menos você entende, menos entende que não
entende. Ao inverso da economia, onde vigora o princípio da escassez, na esfera
da inteligência rege o princípio da abundância: quanto mais falta, mais dá a
impressão de que sobra. A estupidez completa, se tão sublime ideal se pudesse
atingir, corresponderia assim à plena auto-satisfação universal.
O mais eloqüente indício é o fato de que, num país onde
há trinta anos não se publica um romance, uma novela, uma peça de teatro que
valha a pena ler, ninguém dê pela falta de uma coisa outrora tão abundante, tão
rica nestas plagas, que era a – como se chamava mesmo? – “literatura”. Digo que
essa entidade sumiu porque – creiam – não cesso de procurá-la. Vasculho
catálogos de editoras, reviro a internet em busca de sites
literários, leio dezenas de obras de ficção e poesias que seus autores têm o
sadismo de me enviar, e no fim das contas encontrei o quê? Nada. Tudo é
monstruosamente bobo, vazio, presunçoso e escrito em língua de orangotangos. No
máximo aponta aqui e ali algum talento anêmico, que para vingar precisaria
ainda de muita leitura, experiência da vida e uns bons tabefes.
Mas, assim como não vejo nenhuma obra de literatura
imaginativa que mereça atenção, muito menos deparo, nas resenhas de jornais e
nas revistas “de cultura” que não cessam de aparecer, com alguém que se dê
conta do descalabro, do supremo escândalo intelectual que é um país de quase
duzentos milhões de habitantes, com uma universidade em cada esquina, sem
nenhuma literatura superior. Ninguém se mostra assustado, ninguém reclama,
ninguém diz um “ai”. Todos parecem sentir que a casa está na mais perfeita
ordem, e alguns até são loucos o bastante para acreditar que o grande sinal de
saúde cultural do país são eles próprios. Pois não houve até um ministro da
Cultura que assegurou estar a nossa produção cultural atravessando um dos seus
momentos mais brilhantes, mais criativos? Media, decerto, pelo número de shows
de funk.
Estão vendo como, no reino da inteligência, a escassez é
abundância?
Mas o pior não é a penúria quantitativa.
Da Independência até os anos 70 do século XX, a história
social e psicológica do Brasil aparecia, translúcida, na literatura nacional.
Lendo os livros de Machado de Assis, Raul Pompéia, Lima Barreto, Antônio de
Alcântara Machado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Marques
Rebelo, José Geraldo Vieira, Ciro dos Anjos, Octávio de Faria, Anníbal M.
Machado e tantos outros, obtínhamos a imagem vívida da experiência de ser
brasileiro, refletida com toda a variedade das suas manifestações regionais e
epocais e com toda a complexidade das relações entre alma e História, indivíduo
e sociedade.
A partir da década de 80, a literatura brasileira
desaparece. A complexa e rica imagem da vida nacional que se via nas obras dos
melhores escritores é então substituída por um sistema de estereótipos,
vulgares e mecânicos até o desespero, infinitamente repetidos pela TV, pelo
jornalismo, pelos livros didáticos e pelos discursos dos políticos.
No mesmo período, o Brasil sofreu mudanças
histórico-culturais avassaladoras, que, sem o testemunho da literatura, não
podem se integrar no imaginário coletivo nem muito menos tornar-se objeto de
reflexão. Foram trinta anos de metamorfoses vividas em estado de sono
hipnótico, talvez irrecuperáveis para sempre.
O tom de certeza definitiva com que qualquer bobagem
politicamente correta se apresenta hoje como o nec plus ultra da
inteligência humana jamais teria se tornado possível sem esse longo período de
entorpecimento e de trevas, essa longa noite da inteligência, ao fim da qual
estava perdida a simples capacidade de discernir entre o normal e o aberrante,
o sensato e o absurdo, a obviedade gritante e o ilogismo impenetrável.
Publicado no Diário do Comércio, 4 de junho, 2012.
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