Sardinha, generoso, moleque. Genial!
Chamava-se
Antônio Wilson Félix dos Santos, à época com 11 anos (era o ano de 2015), o
menino que sonhava ser um rapper de sucesso. Brilhar como o MC Kevinho, então
estourado. Em consequência do sonho, carecia de gravar um CD; duas músicas lhe
bastavam; uma faixa autoral e outra do próprio ídolo, o fanqueiro paulista. E
Antônio Wilson, ou melhor, o MC Filhinho, seu nome artístico, gravou o disco -
no primoroso estúdio do Moisés Veloso, homem de Bem. O CD fez sucesso.
Arranjos
e instrumentação (guitarra e piano) do mui saudoso Tarcísio Sardinha, solando
agora noutras bandas. O amigo e maestro se dispôs a fazer o trabalho
voluntariamente, com toda paciência e carinho pelo menino artista, a pedido do
gênio musical generoso que também lhe habitava. Só deu tempo o pequeno MC
Filhinho registrar seu potencial musical em disco. E "partiu". Tinha
um câncer, contra o qual lutara bravamente no Hospital Peter Pan. Sardinha
triste com o adeus do pupilo, que gravou em cadeira de rodas, rodeado de
familiares e amigos.
O moleque
Alves
Nascimento (o Bem-te-vi) conta, entre outras comédias, que o freguês bebinho de
um bar em que Sardinha tocava perguntou se o mestre "levava aí uma
Perfídia", que cantaria pra mulher. Sardinha, de braba gentileza com a
intromissão no repertório de luxo, pergunta ao menos qual o tom do
"bebê".
-
Qualquer um, eu canto em qualquer grossura!
Dizem
que, para fugir de blitze do trânsito, saiu da Praia de Iracema em busca da
Parquelândia, cortando caminho pelo Centro. Na Senador Pompeu, por volta das 3
da madrugada, parou no sinal da Guilherme Rocha e dormiu. Um soldado, desconfiado
da demora do motorista desmaiado, bate com o cano do revólver no vidro do
passageiro. Sardinha acorda atordoado, chama pra boca o cano do
"berro" e sopra, pensando fosse o bafômetro.
Saímos
de Pedra Branca cedo da manhã e passamos em Senador Pompeu para o desjejum
matinal, nas cercanias do mercado. Que nem fizemos os demais, pediu cuscuz,
dois ovos estrelados, uma tora de queijo assado, café e leite. Mas "o cão
atentou" e um garçom passou na frente de Sardinha com um prato panelada
fervendo (bastante cheiro verde por cima) e o diabo da cerveja. Gritou, claro:
-
Mudei de ideia!!! Posso não?
Sempre genial
Tocava
tudo, à exceção dos instrumentos de sopro, por força da embocadura - ele mesmo
lamentava não ter boca para tanto. Ensinava sanfona sem empunhar o instrumento.
Escrevia melodias e arranjos sem o violão nos peitos. Compunha, de olhos
fechados - como se dormisse, belíssimas "páginas musicais"
instantâneas; o povo aplaudia a beleza; se perguntassem que música era, não
sabia, tampouco conseguia executá-la de novo.
Fui
testemunha da categoria dele no piano. Desfeita a Banda Nova, ainda jovem, o
que lhe coube de grana deu para mais adiante comprar um piano de parede, salvo
engano Essenfelder. Nunca tocara o instrumento. Estava já casado, recém-morando
na Gustavo Sampaio (térreo), quase esquina com a Raimundo de Arruda. Nos
"altos", residia o amigo de Colégio Júlia Jorge - pianista exímio -
Zé Osmar Marques Filho. Que viu descarregarem o piano do caminhão, chamando-lhe
a atenção.
Encontrei
o Zé depois e ele disse - "meu vizinho de baixo é um monstro no piano,
apesar dos dedos meio tronchos! Chegou ontem no bairro". E eu...
-
Pois é! Ele começou ontem a tocar!
Fonte: O POVO, de 29/04/2022. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.
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