domingo, 17 de dezembro de 2023

A CHEGADA DO HIV CONFORME A IMPRENSA

Gabriel Damasceno, jornalista de O Povo

O POVO remonta os primeiros casos noticiados e a cobertura da imprensa cearense sobre a epidemia

Em 1984, Tadeu Sobreira trabalhava no departamento de patologia da Faculdade Medicina da UFC, localizado ao lado do Hospital das Clínicas (HC). A equipe do hospital recebeu um paciente e suspeitavam que ele pudesse ter o vírus. Então, convidaram o médico para fazer uma análise imunológica.

"Ele virou como se fosse uma curiosidade para muita gente", lembra o imunologista. "A sensação que eu tive, na época, é que ele ficou extremamente incomodado de ser aquela figura, digamos assim, exótica. Que todo mundo queria conhecer. Deve ter sido muito traumático para ele, na minha visão".

O paciente passou um tempo no hospital, mas preferiu voltar para o local onde vivia. "A imagem que ficou para mim é que ele preferiu morrer em casa — porque sabia que iria morrer — do que ficar em um hospital [sendo] motivo de curiosidade".

Na época, Márcia Gurgel, a jornalista aposentada, foi até a casa dele, no Conjunto Ceará, para que pudessem conversar. Ela foi a primeira repórter do Ceará a entrevistar uma pessoa com HIV. "Ele falou da vida dele, que tinha viajado para São Paulo, onde teve muitos companheiros", recorda. "Pouco tempo depois que eu o entrevistei, ele morreu".

Nos jornais cearenses, a história começou a rodar antes mesmo de o HIV chegar ao Brasil. Márcia ficou sabendo do vírus por meio do irmão, que é pneumologista e especialista em doenças infectocontagiosas. "Ele se interessava muito por esse tipo de coisa. Chegou para mim: 'Marcia, tá sabendo que tá surgindo uma doença nova nos Estados Unidos?".

Ele fez uma pesquisa bibliográfica e, com base nisso, Márcia escreveu a primeira matéria sobre o HIV publicada pelo O POVO, no dia 12 de dezembro de 1982. O texto, intitulado "Americanos descobrem nova doença que ataca crianças", abordava um vírus misterioso que teria causado a morte de 300 pessoas homossexuais em Atlanta, nos Estados Unidos.

A aids chegou a ser chamada — pela mídia e profissionais da saúde — de Deficiência Imunológica Relacionada a Gays (GRID). O vírus costumava ser associado pela imprensa, nacional e internacional, ao público LGBTQIA. No Brasil, chegou a ser chamada de "Peste Gay", por alguns periódicos.

Érica Cavalcante é historiadora e autora do livro A aids vira notícia: os discursos sobre a 'doença nova' nos periódicos cearenses da década de 1980. Ela analisou 20 matérias do O POVO e do Diário do Nordeste relacionadas à epidemia. "Ao menos no que concerne à análise das notícias as quais tive acesso para a elaboração do trabalho, os periódicos cearenses não contribuíram para a difusão dessa concepção errônea, preconceituosa e moralizante em torno da Aids", diz a pesquisadora.

"Pelo contrário, mesmo quando parte dos elementos evidenciados nas notícias referiam-se aos homossexuais, a abordagem utilizada primava pela abertura de espaço para que ativistas e demais representantes da comunidade LGBTQIA (que na época não contava com essa designação) [contestassem] nomenclaturas pejorativas como 'Peste Gay', 'Câncer Gay' e 'Praga Gay'", continua.

Por mais que o estigma não estivesse tão evidente nas páginas do jornal, a situação era diferente no entrelinhas. "Teve um lance muito interessante", lembra Márcia. "Um rapaz chegou no jornal e eu já (o conhecia). Tinha lido uma entrevista com ele na Revista Veja: era funcionário de uma empresa de aviação, que tinha sido diagnosticado com aids e foi demitido. Ele entrou na Justiça e foi readmitido".

Depois da situação, o homem começou a viajar por todo o País para falar sobre a discriminação contra pessoas com HIV. Uma das paradas foi a av. Aguanambi 282 (sede do O POVO). Márcia o recebeu e, para o entrevistar, deixou que ele se sentasse na cadeira de um colega, de um editor.

"Quando o colega dono da cadeira chegou… ele enlouqueceu". "Jogou a cadeira longe. Disse que nunca mais sentava ali, porque eu tinha deixado um 'aidético' sentar na cadeira. (Em resposta) eu disse: 'eu quero (a cadeira)' e acho que fiquei com a cadeira até eu sair do jornal".

Apesar da situação, Márcia acredita que o preconceito era mais uma coisa pontual. À época, ninguém sabia muito sobre a doença. Todos tinham medo. "Depois, colegas nossos morreram de aids. No O POVO, no Diário do Nordeste. O vírus foi chegando a todas as profissões e chegou na imprensa. Então, o preconceito foi diminuindo. A gente trabalhava ao lado de colegas que, de repente, estavam com aids".

Publicada em O Povo, de 1/12/23. Cidades. p.6-7.


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