Gabriel Damasceno, jornalista
de O Povo
O POVO remonta os primeiros
casos noticiados e a cobertura da imprensa cearense sobre a epidemia
Em
1984, Tadeu Sobreira trabalhava no departamento de patologia da Faculdade
Medicina da UFC, localizado ao lado do Hospital das Clínicas (HC). A equipe do
hospital recebeu um paciente e suspeitavam que ele pudesse ter o vírus. Então,
convidaram o médico para fazer uma análise imunológica.
"Ele virou como se fosse uma curiosidade para muita
gente", lembra o imunologista. "A sensação que eu tive, na época, é
que ele ficou extremamente incomodado de ser aquela figura, digamos assim,
exótica. Que todo mundo queria conhecer. Deve ter sido muito traumático para
ele, na minha visão".
O
paciente passou um tempo no hospital, mas preferiu voltar para o local onde
vivia. "A imagem que ficou para mim é
que ele preferiu morrer em casa — porque sabia que iria morrer — do que ficar
em um hospital [sendo] motivo de curiosidade".
Na
época, Márcia
Gurgel, a jornalista aposentada, foi até
a casa dele, no Conjunto Ceará, para que pudessem conversar. Ela foi a primeira
repórter do Ceará a entrevistar uma pessoa com HIV. "Ele falou da vida dele, que tinha viajado para São Paulo,
onde teve muitos companheiros",
recorda. "Pouco tempo depois que eu o
entrevistei, ele morreu".
Nos
jornais cearenses, a história começou a rodar antes mesmo de o HIV chegar ao
Brasil. Márcia
ficou sabendo do vírus por meio do irmão, que é pneumologista e especialista em
doenças infectocontagiosas. "Ele se
interessava muito por esse tipo de coisa. Chegou para mim: 'Marcia, tá sabendo
que tá surgindo uma doença nova nos Estados Unidos?".
Ele
fez uma pesquisa bibliográfica e, com base nisso, Márcia escreveu a primeira
matéria sobre o HIV publicada pelo O POVO, no dia 12 de dezembro de 1982. O
texto, intitulado "Americanos descobrem
nova doença que ataca crianças",
abordava um vírus misterioso que teria causado a morte de 300 pessoas
homossexuais em Atlanta, nos Estados Unidos.
A
aids chegou a ser chamada — pela mídia e profissionais da saúde — de
Deficiência Imunológica Relacionada a Gays (GRID). O vírus costumava ser
associado pela imprensa, nacional e internacional, ao público LGBTQIA. No
Brasil, chegou a ser chamada de "Peste Gay", por alguns periódicos.
Érica
Cavalcante é historiadora e autora do livro A aids vira notícia: os discursos
sobre a 'doença nova' nos periódicos cearenses da década de 1980. Ela analisou
20 matérias do O POVO e do Diário do Nordeste relacionadas à epidemia. "Ao menos no que concerne à análise das notícias as quais
tive acesso para a elaboração do trabalho, os periódicos cearenses não
contribuíram para a difusão dessa concepção errônea, preconceituosa e
moralizante em torno da Aids", diz a
pesquisadora.
"Pelo contrário, mesmo quando parte dos elementos
evidenciados nas notícias referiam-se aos homossexuais, a abordagem utilizada
primava pela abertura de espaço para que ativistas e demais representantes da
comunidade LGBTQIA (que na época não contava com essa designação)
[contestassem] nomenclaturas pejorativas como 'Peste Gay', 'Câncer Gay' e
'Praga Gay'", continua.
Por
mais que o estigma não estivesse tão evidente nas páginas do jornal, a situação
era diferente no entrelinhas. "Teve um
lance muito interessante", lembra Márcia. "Um rapaz chegou no jornal e eu já (o conhecia). Tinha
lido uma entrevista com ele na Revista Veja: era funcionário de uma empresa de
aviação, que tinha sido diagnosticado com aids e foi demitido. Ele entrou na
Justiça e foi readmitido".
Depois
da situação, o homem começou a viajar por todo o País para falar sobre a
discriminação contra pessoas com HIV. Uma das paradas foi a av. Aguanambi 282
(sede do O POVO). Márcia o recebeu e, para o entrevistar, deixou que ele se
sentasse na cadeira de um colega, de um editor.
"Quando o colega dono da cadeira chegou… ele enlouqueceu". "Jogou a
cadeira longe. Disse que nunca mais sentava ali, porque eu tinha deixado um
'aidético' sentar na cadeira. (Em resposta) eu disse: 'eu quero (a cadeira)' e
acho que fiquei com a cadeira até eu sair do jornal".
Apesar
da situação, Márcia acredita que o preconceito era mais uma coisa pontual. À
época, ninguém sabia muito sobre a doença. Todos tinham medo. "Depois, colegas nossos morreram de aids. No O POVO, no
Diário do Nordeste. O vírus foi chegando a todas as profissões e chegou na
imprensa. Então, o preconceito foi diminuindo. A gente trabalhava ao lado de
colegas que, de repente, estavam com aids".
Publicada em O Povo, de 1/12/23. Cidades. p.6-7.
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