Seres eternos, se pelando de
medo ‘dela’
Foi
o que me contou Dão Galego. A história de Zé de Goré, que papocou com linha e
tudo, sem ver de que, numa véspera de ano novo. Tem já quatro décadas.
Benquisto
na comunidade, vizinhança foi em peso prestigiar o velório do Zé, melhor,
"dar o último adeus, ao vivo e em cores, ao morto", ex-vereador. Os
pais, já velhinhos, até queriam lá estar para encomendar a Deus o
"menino", mas... Como, se arquejando? A solução encontrada pela viúva
Nininha: dar um passeio com o esquife na residência deles, distante dali légua
e meia.
-
Vai na garupa da tua bicicleta, Totonho! Dinheiro para um misto não há! -
ponderou chorosa a "mulher cujo marido morreu, enquanto não volta a se
casar".
-
É muito pesado, mãe! E longe que só! - ponderou o filho, o da bicicleta.
-
Vai só o caixão na garupa, Totonho, limpo e seco, enrolado numa lona. Goré fica
aqui na sala! Importante é algo dele ir, pra seu Chico e dona Risoleta verem a
derradeira vez!
Sendo
o enterro à tardinha, daria tranquilamente pra levar o de cujus por volta das
11 horas à casa dos genitores, que o abençoariam e, ligeirinho, o corpo
voltaria, riscando direto pro cemitério do Cangulo. Era o pensamento de todos.
Não foi bem assim. O homem era popular demais. Por onde a bicicleta - só com o
caixão enrolado numa lona - passava, gente dava a mão, rolava ligeiro chororô.
17 casas receberam o caixão do ex-parlamentar, com direito a exposição na sala
pras visitas dizerem - "Vai-te, colega!". E haja cerveja e tira-gosto
de capote torrado no endereço de um dos amigos.
Uma
da tarde e o caixão de Zé de Goré, enfim, chega ao endereço. 30 minutos de
permanência, o combinado. À hora saída, porém, dona Risoleta não aguentou o
pancão da tristeza e caiu durinha pra trás. Babau! Confusão grande. Caixão de
Zé pouco percebido, todos se avolumavam, agora, em torno da recém-falecida.
Ocorre que seu Chico, vendo o caixão do filho e a mulher ao lado, hirta, teve
um troço e também falece.
-
Positivamente, arre égua!!! - horroriza-se Nininha ante a cena dos mortos em
série.
Totonho,
prevendo que a coisa fosse bicho contagioso, podendo alcançar ele e/ou
Nininha...
-
Mãe, se avexe! Isso é pai querendo companhia! Bora despachar logo ele, antes
que...
A propósito de companhia
Raimunda
Branca era conhecida por fazer companhia às pessoas já moribundas, cuidar com
desvelo e presteza de todos quando a vida já lhes sumia do horizonte. Caso de
dona Dica, em seus presumíveis últimos instantes. Raimunda estava na casa da
moribunda há um mês, acompanhou tudo. Tarimbada, a cuidadora voluntária estava
crente que seria naquela manhã ensolarada de sábado a viagem da senhora.
"De hoje não passa!"
Após
o banho e o dicumê de Dica, Raimunda acomodou-a na rede, cheirosinha, e saiu
pro banheiro. Nem começara o asseio e a voz trêmula da moribunda alcançou-lhe
forte os tímpanos:
-
Raimunda! Raimunda! Raimunda!
Pensando
tratar-se do chamamento do espírito de Dica para que a generosa senhora lhe
fizesse companhia na grande viagem, a sempre prestativa e ágil Raimunda Branca
responde sem titubear:
-
Vou não! Vou não! Vou não!
Por falar naquele transtorno da
moda...
Marinho
Filho chega em casa destreinado, foi de mal a pior no ENEM. Sem argumento para
explicar ao pai o nível de dificuldade das provas do exame que o levaram ao
malogro, a saída foi culpar o que estava ao alcance.
-
Tenho TDH, pai!
-
Meu esquerdo!!
Fonte: O POVO, de 5/11/2023. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.
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