Por Izabel Gurgel (*)
Em Icó, escutei a professora Fransquinha Olimpio contando do
taboado para guarda e cura de queijo na casa de Glória Dias. O sobrado fica na
antiga rua das Almas. A professora contava histórias do século 19 que chegaram
até ela, menina ainda, quando passou a morar no casarão tão perto da igreja
dedicada ao Senhor do Bonfim.
Contava de ouvir. Houve uma escravizada Cosma contando a vida na
casa de Dona Glória, sempre citada no fio de narrativas sobre os fogos de
artifício em torno dos quais o ano termina e começa outra vez a cada dia
primeiro de janeiro em Icó. Volto aos festejos e fogos do Senhor do Bonfim na
cidade feita à margem do rio Salgado.
Vamos nós para primeiro de janeiro, cinco da tarde. Hora da saída
da procissão do Senhor do Bonfim, que, literalmente, desce do altar e percorre
a cidade. É levado, nos anos mais recentes, em carro-andor. Antes, ia nos
ombros de homens. Conta-se que a imagem veio da Bahia, pelo sertão de dentro,
viajando 'deitada' na rede, um caminho tantas vezes percorrido no Ceará do
Brasil colônia de Portugal. A imagem veio de Portugal, com outro Senhor do
Bonfim, o de Salvador.
Em Icó, a cada primeiro de janeiro a imagem sai do altar. Descia na
madrugada (em 2023, o horário mudou). A chegada da imagem de volta à igreja
aciona o acontecimento maior: a explosão dos fogos que finda a procissão. São
feitos um a um, um por um, com medidas e cura específicas, como queijos
artesanais. Dizemos fogos de artifício para tocar você com algo que conhece. É
de outra ordem. Icoenses chamam 'as bombas do Senhor do Bonfim'. E há uma série
de saberes cruzados que nos lembram dos usos do fogo como proteção e da pólvora
para festejar, bentos, pois, por afirmar a vida. E não destruí-la.
Depois da procissão, segue a semana de conversa e reza e intimidade
ao pé do Santo, até a 'subida' para o altar dia 6. Cada dia, cada parte, cada
operação da festa, constituindo-se como fio e ponto em um bordado. Os festejos são
feitos a mão. Por muitas mãos, há séculos. Uma artesania de ourives: a festa
esplende a joia dos saberes da cidade. Legados e renovação em autoria coletiva.
Saber, saber fazer, requer aplicação, tempo, zelo.
Mulheres e homens se dedicam a guardar os modos de fazer a festa.
Uso guardar no sentido do poema "Guardar", de Antonio Cícero:
"Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,
velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por
ela. Por isso, melhor se guarda o voo de um pássaro do que de um pássaro sem
voos".
Dona Fransquinha via a procissão dos altos da sua casa, a casa onde
sussurram histórias contadas por Cosma. Diz-se que os fogos do Santo começaram
com Dona Glória doando à igreja a pólvora acumulada para explodir um sobrado na
vizinhança, o do Barão do Crato. Resposta dela às ameaças dele. As casas seguem
na paisagem. E na passagem da procissão.
Quero ouvir melhor o mestre guardião dos fogos. Manoel Gonçalves de
Sousa, 'Seu' Bonfim, conta sobre ancestrais seus, mulheres e homens maiores do
que suas trajetórias individuais, zelando o fogo sagrado da ribeira dos Icós.
Icó, precisamos escutar Bonfim Madalena.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 29/10/23. Vida & Arte, p.2.
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