sábado, 16 de dezembro de 2023

DIA DE COMBATE À AIDS: quando o HIV chegou ao Ceará


Márcia Gurgel, jornalista aposentada. (Fotografia de Mauri Melo).

Gabriel Damasceno, jornalista de O Povo

Há cerca de 40 anos, a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) tinha os primeiros registros no Ceará. O POVO relembra diagnósticos iniciais no Estado e trajetória recheada de estigmas

"Eu vou à luta. Se não der, não deu, todos morremos". A declaração é de Maria Concebida de Oliveira, de então 25 anos, pouco tempo após o diagnóstico de HIV positivo, em 1987, ao O POVO. Uma época em que, diferente de hoje, o vírus era visto como uma sentença de morte. Concebida não pensava dessa forma. Era otimista: "A aids não é um bicho de sete cabeças, a gente não morre do dia para a noite".

Ela foi a primeira mulher cearense diagnosticada com aids no Ceará. "O grande sonho dela era tomar uma medicação que havia sido lançada no mundo, o AZT, mas ainda não tínhamos", lembra Anastácio Queiroz, professor de medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e ex-diretor do Hospital São José (HSJ).

O HIV chegou ao Ceará há cerca de 40 anos atrás. As datas são confusas: de acordo com a Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), a primeira notificação de HIV aconteceu em 1983. Foi um homem que teria sido atendido no HSJ. As primeiras notícias de casos suspeitos, no entanto, só datam de 1984.

Concebida nasceu em Milagres, a 482,5 km de Fortaleza, e se mudou para São Paulo aos 19 anos. Ela queria uma vida melhor. Estava em busca de trabalho. Mas, na capital paulista, contraiu o vírus.

Os primeiros sintomas apareceram ainda em 1986, enquanto visitava a família, em Milagres. À época, ela chegou a procurar um médico, que apenas lhe receitou um remédio para diarreia. Os sintomas persistiram e, assim que voltou para São Paulo, procurou o Hospital Emílio Ribas. Fez alguns exames e o médico deu o diagnóstico: suspeita de aids.

Em São Paulo, ela começou o tratamento. Ficou internada por mais de um mês, até que um médico recomendou que voltasse para o Ceará. Foi o que fez. "A gente acompanhou a chegada dela na rodoviária. Ela foi para a casa da família e, depois, foi para o Interior", recorda a jornalista aposentada Márcia Gurgel. "A gente acompanhou todo o quadro dela". "Ela melhorou, ela piorou, ela morreu".

Nas décadas de 1960 e 1970, o Ceará, o Brasil e o Mundo viviam um período de liberação sexual. Até que o HIV apareceu. "Obviamente tiveram os radicais dizendo que era um castigo de Deus. Tinha de tudo", lembra Tadeu Sobreira, médico imunologista e professor aposentado da UFC.

"Aos poucos foram se colocando os pingos nos Is: não era um castigo divino". "Era uma exposição, por falta de conhecimento, a um agente viral", sentencia.

No começo, a síndrome ficou conhecida como 'a doença dos 4Hs': viciados em heroína, haitianos, homossexuais e hemofílicos. Tirando o último H, todos faziam parte de grupos até então marginalizados. A sigla "Aids" foi usada pela primeira vez em junho de 1982. Significa Síndrome da Imunodeficiência Adquirida — ou Acquired Immunodeficiency Syndrome, no original. Já o termo HIV — Vírus da Imunodeficiência Humana — só veio a existir em 1986.

"Até então, era uma doença nova, ninguém sabia do que se tratava", destaca Anastácio Queiroz. "A primeira coisa que chamava atenção era o medo de todos. Um preconceito absolutamente incalculável. Todos temiam, apesar de a aids ser uma doença que se transmitia pela intimidade".

Quando os primeiros casos apareceram, muitos hospitais não queriam tratar os pacientes. "Criava-se um pânico muito grande no hospital. Os outros doentes faziam pressão para que o paciente fosse transferido. Ninguém queria ficar em um ambiente com uma pessoa com aids". "Isso era bem claro", lembra Anastácio.

"Eles eram rejeitados por todos, inclusive por membros da família", continua. "A doença carregava muito medo consigo. Então, era muito triste. Lembro de dois pacientes que nunca aceitaram o diagnóstico e evoluíram de maneira muito negativa, porque nunca quiseram fazer o tratamento".

Série

Este é o primeiro de três episódios sobre o HIV/aids no Ceará. O material será publicado com antecedência para assinantes OP. Na próxima semana, o tema será a mudança de perfil de pessoas soropositivas durante as últimas décadas

Publicada em O Povo, de 1/12/23. Cidades. p.6-7.

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