Márcia Gurgel, jornalista aposentada. (Fotografia de Mauri Melo).
Gabriel Damasceno, jornalista
de O Povo
Há cerca de 40 anos, a síndrome
da imunodeficiência adquirida (aids) tinha os primeiros registros no Ceará. O
POVO relembra diagnósticos iniciais no Estado e trajetória recheada de estigmas
"Eu vou à
luta. Se não der, não deu, todos morremos". A
declaração é de Maria Concebida de Oliveira, de então 25 anos, pouco tempo após
o diagnóstico de HIV positivo, em 1987, ao O POVO. Uma época em que, diferente
de hoje, o vírus era visto como uma sentença de morte. Concebida não pensava
dessa forma. Era otimista: "A aids não é um bicho de sete cabeças, a gente
não morre do dia para a noite".
Ela
foi a primeira mulher cearense diagnosticada com aids no Ceará. "O grande sonho dela era tomar uma medicação que havia
sido lançada no mundo, o AZT, mas ainda não tínhamos", lembra Anastácio Queiroz, professor de medicina
da Universidade Federal do Ceará (UFC) e ex-diretor do Hospital São José (HSJ).
O
HIV chegou ao Ceará há cerca de 40 anos atrás. As datas são confusas: de acordo
com a Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), a primeira notificação de
HIV aconteceu em 1983. Foi um homem que teria sido atendido no HSJ. As
primeiras notícias de casos suspeitos, no entanto, só datam de 1984.
Concebida
nasceu em Milagres, a 482,5 km de Fortaleza, e se mudou para São Paulo aos 19
anos. Ela queria uma vida melhor. Estava em busca de trabalho. Mas, na capital
paulista, contraiu o vírus.
Os
primeiros sintomas apareceram ainda em 1986, enquanto visitava a família, em
Milagres. À época, ela chegou a procurar um médico, que apenas lhe receitou um
remédio para diarreia. Os sintomas persistiram e, assim que voltou para São
Paulo, procurou o Hospital Emílio Ribas. Fez alguns exames e o médico deu o
diagnóstico: suspeita de aids.
Em
São Paulo, ela começou o tratamento. Ficou internada por mais de um mês, até
que um médico recomendou que voltasse para o Ceará. Foi o que fez. "A
gente acompanhou a chegada dela na rodoviária. Ela foi para a casa da família
e, depois, foi para o Interior", recorda a jornalista aposentada Márcia Gurgel. "A gente
acompanhou todo o quadro dela". "Ela melhorou, ela piorou, ela morreu".
Nas
décadas de 1960 e 1970, o Ceará, o Brasil e o Mundo viviam um período de
liberação sexual. Até que o HIV apareceu. "Obviamente
tiveram os radicais dizendo que era um castigo de Deus. Tinha de tudo", lembra Tadeu Sobreira, médico imunologista e
professor aposentado da UFC.
"Aos poucos foram se colocando os pingos nos Is: não era
um castigo divino". "Era uma exposição, por falta de conhecimento, a um agente
viral", sentencia.
No
começo, a síndrome ficou conhecida como 'a doença dos 4Hs': viciados em
heroína, haitianos, homossexuais e hemofílicos. Tirando o último H, todos
faziam parte de grupos até então marginalizados. A sigla "Aids" foi
usada pela primeira vez em junho de 1982. Significa Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida — ou Acquired Immunodeficiency Syndrome, no
original. Já o termo HIV — Vírus da Imunodeficiência Humana — só veio a existir
em 1986.
"Até então, era uma doença nova, ninguém sabia do que se
tratava", destaca Anastácio Queiroz.
"A primeira coisa que chamava atenção
era o medo de todos. Um preconceito absolutamente incalculável. Todos temiam,
apesar de a aids ser uma doença que se transmitia pela intimidade".
Quando
os primeiros casos apareceram, muitos hospitais não queriam tratar os
pacientes. "Criava-se um pânico muito
grande no hospital. Os outros doentes faziam pressão para que o paciente fosse
transferido. Ninguém queria ficar em um ambiente com uma pessoa com aids". "Isso era
bem claro", lembra Anastácio.
"Eles eram rejeitados por todos, inclusive por membros da
família", continua. "A doença carregava muito medo consigo. Então,
era muito triste. Lembro de dois pacientes que nunca aceitaram o diagnóstico e
evoluíram de maneira muito negativa, porque nunca quiseram fazer o tratamento".
Série
Este
é o primeiro de três episódios sobre o HIV/aids no Ceará. O material será
publicado com antecedência para assinantes OP. Na próxima semana, o tema será a
mudança de perfil de pessoas soropositivas durante as últimas décadas
Publicada em O Povo, de 1/12/23. Cidades. p.6-7.
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