sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Crônica: “O padre e o pato” ... e outro causo

O padre e o pato

Invocado do primeiro ao quinto, Jota Crocodilo (Jotinha) era o 'imbuanceiro' da região, sertão de fartura naquele inverno. Diferente em tudo (e de todos), não chamava lamparina de candeeiro, mas de "clarismundo"; gato era "papa-rato"; doido, "bebe-mingau"; padre, "papa-hóstia". E justo com o papa-hóstia Olegário deu-se esta. A cavalo numa besta, o da batina estanca na beira do rio Tiú, que corria cheio, de ponta a ponta. De passagem para onde daria uma extrema-unção, desce do animal, observa a tranquila correnteza à frente e interroga de Jotinha:

- Jovem, é raso esse rio? Nessa passagem aqui?

- Que nem bacia de banhar bebê, seu padre!

- Posso atravessá-lo montado na besta, então?

- Sem nenhum receio! 

Olegário mete o animal na água, com gosto de gás. Mas o tal rio Tiú, exatamente naquele trecho, era um buraco só, feito cacimbão sem fundo. Padre em apuros.

- Pelo amor de Deus, rapaz! Socorro!!! O rio é muito... glub, glub, glub... 

Padre só não morreu afogado porque o santo era forte. E pelos quatro cabras que pegavam jacundá de anzol ali próximo, que se tacaram na água. Olegário e a besta trazidos de volta ao local de partida, sãos e salvos. Jotinha, ainda ali, ouve o cagaço.

- Tem juízo não, seu incréu? Te perguntei se o rio era raso e tu disseste que eu não me preocupasse!

- Pois é, seu padre! Os patos aqui de casa, quando vão atravessar ele, é tudo com água aqui pelo peito. O problema é que...

- ... é que eu quase me afogo! Bora, se reconcilie comigo! Vá na sua casa e me veja uma caneca d'água mineral!

- Água mineral num tem, mas se quiser uma coisinha de aluá, é tempo de São João...

- Traga o aluá! 

Daqui a pouco chega Jotinha com o aluá, numa quenga de coco.

- Que é isso? Na sua casa não tem copo?

- Tem não, seu vigário! 

Padre Olegário bebe que lambe os beiços. Crocodilo, solícito...

- Quer mais?

- Pegue mais uma terça! 

E bebendo a derradeira quengada da bebida tipicamente junina, o padre recorda que quase morre afogado por conta da informação mal prestada pelo Crocodilo e, segurando a quenga com as duas mãos, parte pra cima.

- Eu podia quebrar essa quenga na tua cabeça, nera?

- Faça não, seu padre! Essa quenga é o derradeiro penico que resta lá em casa!...

O autoenxame

A caririense de Barbalha tia Paquinha, "das vista em petição de miséria" nesses 95 anos de vida bem vividos, leu a propaganda do governo (no folder bem aprumado em poder de uma neta) que ensinava: "O autoexame da mama é importante para a detecção do câncer". Leu e se invocou, pois, na verdade, ela não enxergou "autoexame". Como na terra dela enxame tem o sentido de brincadeira, confusão, fuleiragem, perguntou à filha de seu filho mais velho:

- Quer dizer, Leilinha, que seu eu frescar comigo fazendo esse autoenxame mesma eu não adoeço?

Fonte: O POVO, de 29/10/2021. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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