Por Lucília Diniz, jornalista de Veja.
Em vez de
nostalgia, recordações oferecem bússolas pessoais.
Lisboa é uma cidade que evoca as melhores
lembranças de quem já teve o privilégio de caminhar por suas ruas sinuosas. Não
são só os espaços históricos, culturais e gastronômicos, “sítios” aos quais o
visitante quer sempre voltar. É a sensação de acolhimento proporcionada por uma
gente que traz na alma a doçura de um pastel de Belém, corrigida pela
melancolia lírica de um fado. Terra de origem da minha família, Portugal
convoca reminiscências que estão presentes nos meus afetos. Talvez seja por
isso que, certa vez, me chamou atenção uma modesta papelaria, escondida na
freguesia de Santo António, que se destaca da vizinhança pelo nome, incomum e
instigante, que caberia no título de um romance que Eça de Queiroz não escreveu:
“Memórias soltas”. Vim a saber que o nome vem do livro de
um economista lisboeta, Manuel Jacinto Nunes, sobre a extensa ficha de serviços
prestados ao país no século passado — o que informo só para registro pois o que
me encanta no nome não é a que se refere, mas o que sugere.
Memórias soltas são o acervo precioso da
nossa experiência. “A
memória é um diário que todos carregamos conosco”, escreveu Oscar Wilde. Só posso concordar com o
dramaturgo irlandês. Ele quer dizer que o que está escrito no coração dispensa
anotações, pois isso a gente não esquece. As recordações são inseparáveis de
quem viveu situações que merecem ser guardadas no álbum da vida. Não se trata
de nostalgia por um passado que não volta. Trata-se, isso sim, de um acúmulo de
aprendizados que, no devido tempo, se transformam em bússola pessoal e podem
ser compartilhados com as novas gerações. Quantas vezes, diante de um problema
qualquer, pessoal ou profissional, não puxamos pela memória em busca de um
parâmetro, resultado de anos de janela, que pode ser útil na solução?
Nesse sentido, memórias são verdadeiras
âncoras, que nos ajudam a não nos afastarmos do nosso porto seguro. Isso é bom,
por um lado, na medida em que apazigua nossas ansiedades. Mas é ruim, por
outro, se permitirmos que as boas lembranças nos prendam ao que ficou para trás
e se transformem numa limitação do espírito, no receio de querer ir além do
horizonte conhecido. “Memória
é a imaginação do que morreu”,
anotou o poeta Fernando Pessoa, referindo-se ao perigo de viver permanentemente
na tentativa de reeditar o passado.
Com frequência esse impulso determina
nossas escolhas. Num restaurante, por exemplo, às vezes somos tentados a pedir
o prato de sempre, em vez de explorarmos as possibilidades do cardápio. Nas
viagens, da mesma maneira, não é incomum optarmos por roteiros com que temos
familiaridade, quando há tantos desconhecidos pedindo para ser visitados. Nada
disso, no entanto, evita decepções. A comida e o destino podem não corresponder
à lembrança que temos deles — sim, porque memórias são seletivas, retêm o que
nos agrada, o que é apenas parte da experiência real.
É por isso que, além de âncoras, as
memórias devem ter algo da vela que, estufada pelo vento da curiosidade, nos
impele para longe dos mares conhecidos, contribuindo para a formação de novas
memórias, num círculo virtuoso.
Da próxima vez em Lisboa vou procurar
outra papelaria.
Publicado originalmente na
revista Veja.
Fonte: DINIZ, Lucília. Memórias Soltas. In: Veja, de 27/07/2022, Ed 2.799. Ano 55 n.29. p.79.
Nenhum comentário:
Postar um comentário