Por Márcia Alcântara Holanda (*)
Há quarenta anos,
conheci minha amiga Rita. Dez anos mais nova que eu, descobrimos estilo
de vida e gostos semelhantes desde que nos conhecemos. Nossas conversas vão do
último seriado com protagonismo de Nicole Kidman até o que se possa imaginar,
sobre tudo no mundo, e nós.
Da última vez, varamos a
noite discutindo a vida. Rita me perguntou: "Como é que você está vivendo
com as limitações dos 82 anos? Mais quatro doenças crônicas e um câncer recente
na língua?" Respondi prontamente: "Feliz, bem feliz!" Rita
encarou-me com olhos arregalados de espanto e disse: "Você está
mentindo."
"Estou não. Sei que
a sociedade ocidental tem sido cruel para com os velhos. Sofremos descasos como
se fôssemos objetos maleáveis ao gosto dos mais jovens, instituições e família.
Simone de Beauvoir
afirmou no seu livro 'Velhice': 'Para nossa cultura, o velho é o outro,'
indefinível, distinto, portanto, um desconhecido nosso."
O que fiz para encontrar
felicidade nesse contexto opressor dos velhos foi percorrer a construção da
minha identidade e da minha essência. Refleti sobre o ser em si e o ser para si
sartriano. Aí palmilhei meu próprio ser até a existência real dos fatos que me
formataram, quase sempre gostando, olhando e vendo o outro, e o aceitando. Aí
já vislumbrei felicidade.
Da infância ao dia em
que, como médica, parei de clinicar, graças aos pontos cruciais de minha
corporeidade e existência octogenária que descortinaram minha finitude, quis
conhecer mais.
Na infância, vivi a
liberdade na casa da minha avó. Na adolescência, havia tensão e opressão. Era
ignorante em: sexo, beleza do corpo, cheia de pensamentos vazios. Só obedecia a
ordens. A sociedade me escravizou com questões para ter respostas ditadas por
ela própria: "Vai ser o que na vida? Já tem namorado? Quando vai noivar? E
se casar? Vai ter filhos?" Sucumbi a tudo, sem tempo para pensar. Vivi
assim, a idade adulta e a primeira etapa da velhice, sabendo pouco o que eu era
e o que queria da vida, muitas vezes sentindo-me bem infeliz.
Então escrutinei a minha
vida. Descobri: fiz o que foi necessário ao bem comum: ao meu e ao do outro. Vi
a finitude como um clarão brilhante que me fez reconhecer o eu em mim e para
mim nesse fim. Ganhei a liberdade radical, desgarrei-me das algemas sociais.
Com essa ciência,
comecei a viver experiências libertadoras, que venho conquistando nesse
caminho. Essa liberdade ajustou-me fisicamente às limitações: criei minhas
regras, fazendo o que quero, do jeito que posso. Instalei-me na tranquilidade,
aposentei o futuro, vivo o momento.
Creio que não precisaria
da pressão social, nem de nada para que cada um de nós tivéssemos octogenarice
rica de paixões, amores mis à família e amigos e a si próprios. É para ser
assim.
Rita me olhou,
abraçou-me e disse: "Vamos caminhar!"
(*) Médica pneumologista; coordenadora do
Pulmocenter; membro honorável da Academia Cearense
de Medicina.
Fonte: Publicado In:
O Povo, de 7/07/2024. Opinião. p. 20.
Nenhum comentário:
Postar um comentário