Por Izabel Gurgel (*)
Vai ter festa em
Juazeiro do Norte. O Reisado São Miguel Arcanjo faz aniversário nos últimos
dias de abril. Há poucos anos, o Sagrado Coração de Jesus foi entronizado na
sede do grupo, no bairro João Cabral e, a cada primeiro de maio, renova-se o
ato de entrega do lugar e o que nele vive a quem ali reina.
A prática de elevar ao
trono o Sagrado Coração se fez tão parte do Cariri cearense como as águas das
fontes da cheia de poros Chapada do Araripe. Das forças da natureza ali
manifesta, a Chapada reina no desenho da paisagem. E nos olha. Ela filtra a
chuva que, nascida do chão, cai das nuvens.
Conta-se a devoção ao Sagrado
Coração surgindo a partir da mística Margarida Maria Alacoque, que viveu na
Europa entre 1647-1690. Como a juazeirense Maria de Araújo, a beata cujo
milagre da hóstia transformada em sangue é um marco na invenção da cidade,
Alacoque tinha visões. O Sagrado encarnado, manifestando-se no trono possível
do humano, o próprio corpo.
A Igreja Católica a
reconhece como Santa (a nascida na França, não a sertaneja). E no século 19
institui o culto ao Sagrado Coração como um modo de expansão do catolicismo ortodoxo.
Juazeiro, que tem um evangelho próprio, segundo a Nação Romeira, fez chover
bonito na orientação oficial. Tem gosto de fartura, que só tem graça com
partilha, a celebração de entronizar e renovar. "Eu vim para que todos
tenham vida", diz Jesus na Bíblia.
Que todos tenham vida em
abundância acende o menino brincante em Tarcísio Mendes da Silva, 56 anos. Neto
e filho de carpinteiro, ele começou criança no Reisado São Sebastião no bairro
Romeirão, onde a família de Santa Helena, na Paraíba, passou a morar.
O avô havia vindo antes,
por devoção ao Padrinho, Padre Cícero. O pai veio para trabalhar como pedreiro
nas obras da Matriz e do mercado, incendiado em 1974. "Meu pais sempre
fizeram a reza dos Santos", diz Tarcísio, sobre a Renovação na casa de
Maria e Miguel José, a cada 27 de setembro, dia de Cosme e Damião.
Mestre Tarcísio
homenageia também seu pai ao batizar o reisado. Auto do ciclo natalino, o
reisado louva o Deus Menino que acaba de nascer. A Folia de Reis, a cada 6 de
janeiro, é a festa da Epifania, a revelação. Os três Reis, que visitam o filho
de Maria e José, vão expandir a boa nova.
Se você estiver em
Juazeiro na data-marco da luta das gentes trabalhadoras por decente condição de
vida, tome o rumo da rua Odilio Figueiredo, 601. A Renovação na casa-terreiro
São Miguel é das mais bonitas. Nunca vi. O rezador é Francisco. O reisado
brinca. Come-se, bebe-se. O professor Renato Dantas já viu com Banda Cabaçal
abrindo a noite. E me fala sobre. Escuto e bebo na fonte encantada que se
revela quando vejo Mestre Tarcísio dançar.
O Reisado São Miguel
revelou o menino que nasceu para ser grande. Digo para o Mestre Tarcísio que,
dançando, ele parece três vezes maior, uma força da natureza. Ele ri: "me
dizem isso". "Quando a gente se traja, já se transforma. Não é mais
Tarcísio... Um guia de Deus vem para ajudar a gente".
Outro dia, eu o vi
"botar" o Jaraguá. Eu o vi sair de cena, retirar o manto e a coroa de
Rei, o peitoral e a espada. E ajustar o cordão da engrenagem que faz o bicho de
bico longo brincar de caçar cutucar morder quem está ao redor. Vestiu a coberta
da cabeça aos pés, tornando-se um corpo fluido, a bem dizer água. Voltou à cena
traquino, dobrando-se sobre si, raspando no chão o bico no alto da cabeça, mais
solto do que os cachos de fitas no figurino dos brincantes. Imaginei o faiscar
dos olhos do seu mestre de reisado, Sebastião Cosmo (1940-2010). As reinações
de um Mestre nos fazem nascer de novo.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 28/04/24. Vida & Arte, p.2.
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