Por Mailson Furtado (*)
Entre as tantas pernas
que colecionava, corria o menino Raimundo, amarelo de inquietação, nas ruas da
Fortaleza dos anos 1960. Na correria, driblava a cidade que crescia, a fazer, numa
esquina, cestas pelo time de basquete do América, noutra, gols pelo time de
futebol de salão do Iracema, noutra, gols pelo time de futebol juvenil do
Fortaleza, noutra, pontos pelo time de voleibol do Náutico. Nas carreiras,
seguia. Corria. Tinha 16. Há pouco fora convocado para a seleção cearense de
voleibol. Até que.
Há um mês o Brasil se
emborcava. Era instituída a ditadura civil-militar em 1º de abril de 1964, sem
se saber o que se daria dali por diante. Mal sabia o menino que aquilo seria o
motivo pra tantas outras pernas. Mas até ali seguia a correr, a fazer cestas,
pontos e gols, até que na manhã de 1º de maio, de frente ao Clube dos Diários,
embriagada, uma camionete rural invade a calçada da Monsenhor Tabosa, e
encontra as zilhões de pernas de Raimundo, que, pela primeira vez, talvez tenha
ficado quieto.
Acamado por um ano em um
difícil tratamento no Rio de Janeiro, seguiu a vasculhar o mundo e ali, sem
pernas, embrenhou-se em ser feliz noutras quatro linhas, os livros.
Nunca correu tanto.
Viajou mundos e seguiu em traquinagens através da poesia, não aceitando a
prisão que lhe era imposta. Sem exceção, nenhuma prisão. De volta a Fortaleza,
retornou a correr, agora contra quem cerceava liberdades, por longos anos o
sempre menino Raimundo foi perseguido e quatro vezes preso pelo regime, que não
o venceu. Ali tomaram suas pernas, que só impulsionaram a outras tantas viagens
por tantos mundos da arte.
Vinda a esperança e a
liberdade, nômade, foi brincar por sertões, praias e serras de todo o Ceará com
caretas, bois, burrinhas, jaraguás, e dançar cocos e maracatus, prometendo a si
mesmo que só sairia daqueles lugares se os pudesse levar junto. Cumprindo a
promessa, trouxe-os em um balaio só a outras quatro linhas, dessa vez para os
palcos do teatro.
E assim, com a mesma
energia da busca da bola rumo a um gol, a um ponto, a uma cesta, que aprendeu e
fez até os 16, seguiu o menino Raimundo, até os 76, em busca de histórias que
pudessem eleger um grito, um entalo ou qualquer emoção para cristalizar o presente,
dentro de quatro ou mais linhas. Conduziu tantos mundos a poemas, contos,
danças, cenas ou mesmo conversas de pé-de-calçada que nem mesmo a lembrança
daquela rural embriagada conseguiu afastá-lo delas.
No último dia 22 de
março, o menino Raimundo, também chamado Raimundo Oswald Cavalcante Barroso, ou
apenas Oswald Barroso, pesquisador, professor, poeta, romancista, dramaturgo,
letrista, diretor teatral, gestor cultural, historiador, antropólogo,
jornalista, pai, esposo, avô, amigo e atleta até os 16 anos, a seguir nômade,
fez sua última viagem, mas como sempre inquieto, e estando em sabe-lá-quantos
lugares ao mesmo tempo, aqui segue, intimando a gente a brincar de ser feliz.
(*) Cirurgião-dentista. Escritor e professor.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 4/04/24. Online.
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