sexta-feira, 7 de junho de 2024

A PRAIA É DO POVO

Por Romeu Duarte Junior (*)

Como se o país não tivesse problemas com que se preocupar, enfrentar e resolver, alguns sabidinhos no Senado e na Comissão de Constituição e Justiça - CCJ resolveram propor uma alteração à Carta Magna via elaboração de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), de número 03/2022. Trata-se, nada mais, nada menos, de retirar os terrenos de Marinha da lista de bens pertencentes à União. O projeto propõe transferir parte desse extenso território a estados, municípios e até proprietários privados. O que se concretizou no Parque Nacional de Jericoacoara, no começo deste ano, poderá ser o modelo do que se trama para o litoral brasileiro. Ou seja, para pegar um bronze, dar um jacaré e surfar nas ondas, teremos que pagar pelo uso da praia. Maravilha, né?

Com 7.637 km de linha de costa, podendo chegar até a 8.500 km se forem computadas as baías, e 33 metros de largura, contados do mar em direção ao continente, o litoral brasileiro é o 15º do mundo, totalmente voltado ao Oceano Atlântico e considerado pela Constituição Federal de 1988 como patrimônio da União. A proposição já vem enlameada, vez que o seu relator é o filhote 01 do inominável/inelegível/inviajável. Pode-se idealizar o que se projeta com base nessa nova condição: a miamização/cancunização/ camboriuzação da orla marítima nacional. Está no mapa do capital um dos maiores processos de gentrificação já postos em prática no Brasil, além da possível ocorrência de desastres ambientais de toda ordem. Camaradas, o mar não está para peixe...

Aqui mesmo, em Fort City, há muito anos convivemos com situações do tipo. O hotel praiano situado no Centro que impede a chegada à praia, barracas na Praia do Futuro que proíbem seus frequentadores de comprar umas piabinhas do ambulante para o tira-gosto, o complexo turístico e o seu amplo coqueiral de lucros. Há legislação referente ao assunto, a qual é sempre desprezada pelos gananciosos de plantão, que fazem o que querem e o que bem entendem, muitas vezes com o beneplácito do poder público que deveria fiscalizá-los. Uma outra gracinha é o valor das concessões das áreas litorâneas à iniciativa privada: a do Parque de Jeri custou a bagatela de R$ 61 milhões ao consórcio vencedor. Negócio da China, não? E o engraçado é que isso continua sob Lula.

Já que a distopia é o cotidiano brazuca, num futuro provável iremos à praia, antes passando por um guichê, com um sujeito de fones de ouvido atrás, que nos perguntará: "Quanto tempo vocês vão passar na areia? Quantos mergulhos no mar irão dar? Quantas ondas vão surfar? Quantas cervejas irão beber? A que horas irão sair da praia? Eis a conta". E um lembrete macabro: "Cuidem para não se afogar, pois cliente morto não paga e o prejuízo é nosso". Viveremos numa espécie de versão teatral praiana da canção "Taxman" dos Beatles. Pode-se imaginar a multidão de pobres, que têm no mar a sua única diversão gratuita, sendo barrada na praia por liseira. A orla é um bem de uso comum do povo e não de quem pode pagar. Lutemos para que continue assim.

(*) Arquteito e professor da UFC. Sócio do Instituto do Ceará. Colunista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 3/03/24. Vida & Arte. p.2.

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