Pisiquicamente ariado
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Prestenção, Déca! É na (Rua) Major João Neném, 1111, perto da praça Dr. Mané
Pêdo. Casarão pintado de azul com amarelo, um pé de oiti mesmo ao lado...
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Tá, vô!
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E tem um restaurante desses bem peba 'adifronte', certo?
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Ok, vô! Só com o nome da rua e o número eu já chegava lá de prima!
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Ah, é sempre muito movimentada a bodega do Mário Mota. Gente no mêi da canela!
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Pelo amor de Deus, vô!!!
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E chegue cedo pra não pegar fila!
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Égua, vô!!!
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Dá pra esbarrar lá amanhã cedo com essa explicação que eu dei?
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Claro, né, vô! Só sendo muito arigó!
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Lembre-se: tem uma kombi véa colada à porta do estabelecimento daquele
marreteiro!
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Quem ouve o senhor falar assim, vô, pensa que tá falando com um jumento!
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Posso vacilar não, Déca! Os juros daquele larápio são altos demais! Um dia de
atraso e nós paga "drobado". Inda bem que essa é a derradeira
prestação dos dois rolos de arame farpado que comprei dele!
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Pronto, vô?
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Agora pronto! Vá-se!
E
o neto querido de seu Chico de Tanha ganha a lapa do mundo, de bicicleta, em
busca do endereço tão bem esquadrinhado. Déca vai "assobiando aninonha à
moda menino de circo", como diria o tio dele, o saudoso Zé Maria
Crocodilo. Tranquilo, lá se vai o jovem pagar a derradeira letra de 200 contos
referentes aos dois rolos de arame farpado comprados pelo avô. Como não anotou
nada em papel, confiando-se apenas na memória, e, pra lascar ainda mais, rolou
uma paquera em meio de caminho, Déca se perdeu. Necas de saber onde estava após
uma hora pedalando.
Sabia
apenas que o destino era uma bodega, mas, quede ele recordar o nome do dono, o
Mário Mota? Sobre o casarão azul com branco, o restaurante ordinário ao lado, o
pé de oiti ao lado, a kombi véa colada à porta do estabelecimento, esquecera
tudo. Perdera-se no trajeto. Por volta das 15 horas, sem saber que desculpa dar
ao avô, retorna à casa. Buscou ser verdadeiro, contou o que sucedeu. Chico de
Tanha dera as explicações todas por saber que o neto sofria de problema até
então não diagnosticado.
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Déca, sempre desconfiei que tu fosse psiquicamente ariado!
A diferença que faz o
"i" para um "doedo"
Tem
gente que reage violentamente ao ser chamado pelo apelido, por um nome feio
qualquer, por um hipocorístico fuleiro. Com um amigo meu acolá, pinguço
afamado, nada se compara. Coisa de "doedo", algo
"timpanicamente" surreal. Se chamarem o sujeito de Moraes (com
"e") ele se comporta dum jeito - calmo, sereno, pacífico, cordato,
elegante, gente boa. Porém, se pronunciarem Morais (com "i"), temos
ali outra pessoa, diversa daquela - agressiva, petulante, colérica, passional,
vingativa, abestada. Enfim, reações distintas por causa de uma letrinha de
igual fonema pronunciada.
Preocupado,
buscou ajuda pro transtorno. Com quem? Com um colega de pôde.
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Diebeisso que eu tenho, Mafaldo?
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Sistema nervoso parassimpático quengado - respondeu o colega, professoralmente.
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Que faço resolver esse problemão!
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Tem jeito mais não. Juízo curto à moda coice de bacurim não tem conserto.
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Tô mental, é?
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... Morou, Morais? Quem morou não mora 'maes'!
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'Mi' sinto bem 'milhor'...
Fonte: O POVO, de 19/04/2024. Coluna
“Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.
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