Por Izabel Gurgel (*)
E a avó, tão fina quanto
firme, sentava o menino danado na cadeira suspensa no armador. Era um castigo
comum. A criança nos altos da parede, a cadeira maior que ela, perninhas
penduradas, a distância até o chão várias vezes o seu tamanho, o manejo de si
talvez cheio de cuidado e medo para não rolar abismo abaixo.
Ouvi a avó contar
durante o almoço preparado por ela, cada prato com um cheiro sabor textura
temperatura que dava vontade de nascer arroz e morrer baião-de-dois ali,
naquelas panelas parque-de-diversão e seu labirinto de espelhos. Passava-se de
uma para a outra sem parar para a auto-apreciação, nossos rostos nelas surgindo
e se desfazendo a cada movimento das mãos se servindo.
A mesa redonda do almoço
deixava mais agudo qualquer olhar sobre si e o mundo lançado da cadeira de
linhas retas, outrora presa tão perto do teto que fazia duvidar do seu destino
de cadeira, que nos sustenta acima do chão, mas sempre fiel a ele. Tirar o chão
de alguém. Ficar sem chão.
Senhora bordadeira, a
avó tem saber de ourives. As manualidades, sabemos, são artes da ourivesaria. O
neto nos mostra as relíquias, desde o tecido ao efeito do que a avó é capaz de
fazer com linha e agulha. As joias não nascem para conferir sentido aos cofres.
Carecem todas de exibição, uso, só guardadas na alegria de serem salvas pela
rua. Um carnalvazinho no jardim dos olhos.
Na volta para casa, dei
com um livro que dizia da usança da cadeira nos altos para sustar crianças
imparáveis. Literatura. Enviei mensagem para o neto na hora, mas não fiz foto
da página ou da capa e o livro se foi no vapor da panela ao fogo que é a memória,
do cru ao cozimento em durações variadas.
Cora Coralina escreve
sobre um castigo, pensamos Brasil Colônia, o da criatura levar feito colar,
noite e dia, dia e noite, um pedaço da louça por ela quebrada. Amarração
caseira com cordão. O que lhe obriga uma perversa vigilância, quase impossível
durante o sono. No caso de Goiás narrado por Cora, inútil lição. A vida quase
sempre por um fio.
Levantei para pegar o
livro da poeta (cujo dicionário tinha marcas dos usos na cozinha, Cora e a
feitura dos doces). Os livros dela estão lá, mas a história da menina e o
caquinho de louça sumiu. Queria dizer para você o título, a editora, um modo de
'dar o endereço', dizer o rumo, facilitar a busca e o achado, em caso de
interesse. Uso de criaturas leitoras que acho cada vez mais bonito. Assim um
gesto necessário em tempos de tanta dispersão sem semeadura.
Veio do Cedro a história
do menino suspenso. Contada à mesa, entre espanto e riso. Avó e o menino anos
depois, gente grande, tecendo juntos com quem ouvia.
Ler é escutar.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 26/05/24. Vida & Arte, p.2.
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