Por Izabel Gurgel (*)
O que podemos aprender com mulheres rendeiras? Na aula inaugural da
especialização em Cultura e Meio Ambiente do IFPe, em Recife, antes da pandemia,
nossa fala se entrelaçava com outras, sobre saberes e práticas aplicadas de
conhecimentos. O encontro se desdobrou em percursos na sala de aula que é o
mundo, como as visitas às casas-ateliês da Tracunhaém feita a mão, moldada no
barro, com o fogo de forno tão aceso e cotidiano, a queimar, a fazer arder
argila, água e ar. E a parada em Bezerros, uma iniciação ao memorial do
xilógrafo J. Borges, casa, oficina, espaço expositivo, loja.
No IFPe, falei sobre meu encontro com labirinteiras de Canoa
Quebrada, as do fazer a renda bordada ou o bordado rendando de nome labirinto,
do meu espanto renovado a cada visita à Casa de José de Alencar, em Fortaleza,
atraída pelas coleções de renda ali guardadas. Linhas para desenhar melhor
nossas perguntas. Com livros e xilos, esculturas, pinturas, fotografias (álbuns
domésticos de viagem, caixas e envelopes com fotos de família, registros de
profissionais), a vontade de escutar as rendeiras era um convite ao labirinto
das rendas. Digo rendas e rendeiras, acervos do mundo no Ceará.
Mulheres estão em todas as frentes da vida Tremembé. São lideranças
desde as primeiras manifestações reivindicando afirmação como povo indígena, o
que no Ceará começa a ganhar visibilidade na década de 1980. Até os dias
atuais, com a assinatura, em março de 2023, da homologação da terra como
direito garantido pela Constituição de 1988, as mulheres são lideranças na
Barra do Mundaú, em Itapipoca.
O Movimento Cunhã Porã pauta as chamadas questões de gênero.
Mulheres fortalecem práticas ancestrais de relação com o sagrado. Dirigem a
Escola Indígena Brolhos da Terra. Junto ao Conselho Tremembé, cuidam da
organização da vida do e no território, com atuações para além dele.
Do alimento à medicina, da política à educação, a complexidade do
dia-a-dia passa também pelo ofício de fazer as rendas de almofada. Rendeiras
Tremembé, ô vontade de percorrer as quatro aldeias ouvindo cada uma de vocês. E
voltar à Canoa, e percorrer ruas e becos escutando labirinteiras.
Adriana Tremembé e Herbene Rosa Tremembé são as lideranças
reconhecidas dentro e fora do território. Aprenderam a fazer renda ainda
criança. Tornaram-se professoras da escola pública do lugar. Adriana é guardiã
de práticas da encantaria. Herbene, da casa-sede da Festa da Farinhada. Têm,
incorporados, os ciclos de vida-morte-vida da natureza, vividos na produção do
alimento, da cura e do cuidado pessoal, da casa, do território. Como a rendeira
e rezadeira octogenária Maria Pedro dos Santos, mantém vivos conhecimentos que
nos antecedem e nos ultrapassam. Acompanhei Adriana na cozinha comunitária,
antes da inauguração da casa de cura, na feitura de batiputá, usado para
alimentar e sarar.
São guardiãs dos enlaces e cruzamentos que desenham futuros, como o
trocar de bilros desenha a renda. Um dos sons do território, o do manuseio dos
bilros na feitura da renda de almofada, é leitura da natureza. Quando encontrar
uma rendeira, escute-a. O mundo vive dando resposta. O que demora é o tempo das
perguntas, li em algum ponto da renda de José Saramago.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 21/07/24. Vida & Arte, p.2.
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