sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Crônica: “Jamais diga uma mentira que não possa provar” ... e outro causo

Jamais diga uma mentira que não possa provar

Valho-me de pensamento do genial Millôr Fernandes para dar título a estas mal traças, e contar duas potocas. Uma de papai e outra minha. Começo por seu Zé Duarte. Papai contava 85 anos quando passou a exercitar mui fertilmente a imaginação, registrando - bem sério - histórias que mais se assemelhavam a cabeludas estórias.

- Como é que é, colega?!? Tu foste volante do Ferrim? - mamãe assustada com a boa novíssima do marido.

- Servi muita bola, dona menina, pra Fernando e Zé de Melo em goleadas homéricas do meu glorioso Tubarão da Barra!

- E porque diabo tu nunca me falaste isso? - tornava a cismar dona Terezinha, conhecedora de cada detalhe de vida do marido, com quem estava unida em matrimônio há 60 anos à época.

Sem a menor cerimônia, ele emendava uma pabulagem na outra, em meio a familiares e amigos descrentes. Jurou de pé junto, naquele domingo, que fora delegado de polícia, prendera muito meliante no Alagadiço e no Coqueirinho, deu carreira em ladrão de bode, foi responsável pela captura de conhecido puxador de carros. Mamãe, encabulada total...

- Zé, pelo amor de Deus! Tu me matas de vergonha!

Agora é a minha vez!

Bem, fui inventar de contar episódio de minha infância, que somente eu sabia, e acabei tomando tonitruante vaia da assistência - o povo da família. Passei por "muito mentiroso". Como provar que, no início de 1969, aos 12 anos, ainda as pernas ligeiras, treinei no Fortaleza Esporte Clube, levado ao Parque dos Campeonatos por um olheiro de meninos bons de bola do São Gerardo? "Cadê fotos? Matéria de jornal? Testemunhas?" Jurandir Branco é como se chamava o olheiro, conhecido no bairro por "Ratinho". Fomos a pé ao Pici, cortando caminho por dentro. Ingênuo, eu expunha:

- Jurandir me deu uma camisa e me empurrou pra dentro do gramado, na ponta-direita, no meio duma ruma de meninos. 10 minutos em campo e não vi a cor da bola. Fui sacado do time. Voltei pra casa sem mostrar potencial, triste...

A plateia atenta à aventura de 55 anos atrás, entre admirada e incrédula, disparou comentários mordazes, levando-me a recordar as arrumações ditas por papai. Vê só!

- Conversa é essa, vô! Num tá vendo que o senhor nunca jogou no Fortaleza! - disparou um neto. - Conta outra, vai!

- Aí mente, Garricha depois da gripe! - disparou um vizinho despeitado.

- Tarcisim, meu fí! Esse você nunca me confidenciou! - despachou elegante a mulher.

- Com que pernas tu jogava bola, Tatá? - indagou a filha desconfiada.

- Por Deus como eu joguei bola no Fortaleza, meu povo! Quero é cegar na hora da morte! Tudo bem que eu não tenha tocado na pelota, mas... - tentei justificar-me, em vão.

- Faz o seguinte, conta agora aquela em que tu morre no final!

Aí foi a gota d'água. Parei imediatamente o converseiro. E o pensamento em papai, quando o bichim falava aquelas (im)prováveis lorotas. Pensei: e se seu Zé Duarte jogou mesmo no Ferrim? E se for verdade que ele se formou em Administração, na turma de Donald Birungueta? Sim, é possível que ele tivesse o domínio de 11 idiomas. Sabe lá ele não deu plantão no 7º DP nas férias do delegado Pantico! Acho até que ele chegou a comentar futebol ao lado de Paulino Rocha, na Assunção? E se papai estivesse falando a verdade?

Comecei a desconfiar de mim, acreditando que, em verdade, eu treinei foi no Ceará Sporting, nos tempos de Gildo, Gojoba, Magela, Edmar. Acho que foi. Arturzão chegou a dizer que eu tinha futuro como meia esquerda no time juvenil, dando assistência a Ivanildo...

Fonte: O POVO, de 12/07/2024. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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