Por Izabel Gurgel (*)
A linha mestra é a vida. A leitora Virginia Fukuda aprende a bordar
ainda criança, como a maioria das mulheres rendeiras nos dizem da iniciação na
renda. Assim me contaram labirinteiras de Canoa Quebrada. Escuto a voz delas ao
escrever: Aldízia Pereira dos Santos, a Babai, Maria Carmélia da Rocha Santos,
Maria Leonor dos Santos Freire. Na literatura, encontramos a descrição da renda
como um bordado que foi se adelgaçando. O labirinto é uma renda bordada ou um
bordado rendado? Renda é desenho no vazio. Bordado, composição em um tecido
pré-existente.
Fukuda lê e borda, ensina a bordar, borda leituras nas quais se
aplica. Fez-se um relicário de linhas tecidas. Uma vez finalizado, cada bordado
voa, feito pássaro a deixar o ninho. Voa no sentido de autonomia em relação à
fonte. De família de origem japonesa, vem viver em Fortaleza. Conta em uma
blusa, através do bordado, sua relação com a cidade, um mapa com sotaque
próprio de lugares-acontecimentos. Bordou quando dos seus 40 anos como moradora
da cidade outrora cheia de mãos rendeiras, não só no Mucuripe.
Ela bordou um roteiro de viagem com a filha e netos, de São Paulo a
Minas. E músicos e músicas (Alberto Nepomuceno, chorinho e jazz), bordou livros
vistos em exposições de arte têxtil, bordou a partir da leitura deles: Clarice,
Guimarães Rosa, Mário de Andrade, dentre outras autorias, como participante do
Iluminuras, projeto de extensão da UFC de iniciativa da professora-bordadeira
Neuma Cavalcante. A leitura como experiência física, acontecendo no corpo, e
prática artística.
Acervos de renda no Ceará nos dizem da produção de iluminuras por
mãos, em sua maioria, anônimas e de mulheres. Cada peça, e o conjunto delas,
afirma a leitura do mundo, de mundos, como uma prática de invenção no
cotidiano, cotidiana. Cito as coleções de rendas que a UFC guarda na Casa de
José de Alencar.
A nomenclatura dos pontos, trazendo, por exemplo, a diversidade da
flora e da fauna, um enlace outro no nosso vocabulário; a criação de
ferramentas, no caso dos bilros, usados na renda de almofada, feitos em marfim,
diferentes madeiras, coquinhos e sementes, com desenhos de formas também
variados; o uso de matérias vegetais tornadas linhas, como o algodão ou a
bananeira, ou alfinetes feitos de espinhos de cactos; a montagem de redes, como
as de pesca, para a feitura da renda do tipo filé, feita com agulha, como o
labirinto; criação, reuso, transformação, elaboração de leituras da natureza.
Reciclar é milenar.
Como os livros, com uma longa história de invenção do objeto
incluindo inscrições em tabuinhas de madeira, argila, barro, as rendas, os
bordados e as criaturas leitoras são frutos da terra e do trabalho. Vi no
instagram da Cerâmica Alpendre, do artista Túlio Paracampos, um prato antigo
tornado peça de museu com uma inscrição que diz isso, algo como você e eu somos
terra. A mucunã olho-de-boi e a macaúba no mercado (vi no central de Juazeiro
do Norte), usadas para benzer, curar, comer, viram cabeça de bilro.
Sem água, ar, árvore, solo não haveria o jornal que você lê agora,
no papel ou na tela. Fica mais bonita a alegria serena, sutil, um contentamento
incorporado, da Virgínia Fukuda reconhecendo a mãe como grande bordadeira e
leitora. O que podemos aprender com mulheres rendeiras, além do fazer renda?
Fukuda, borda as rendeiras. O nome delas.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 7/07/24. Vida & Arte, p.2.Cea
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