Por Karine
Lane, jornalista de O Povo
Em entrevista ao O POVO+, a médica
pneumologista Penha Uchoa, coordenadora do Programa de Controle ao Tabagismo do Hospital de
Messejana, analisa o panorama no Brasil e explica como funciona esse
acolhimento. Confira a seguir:
O POVO+ — O Hospital de Messejana Dr. Carlos Alberto Studart (HM) é
referência no tratamento de fumantes. Existem números de quantos pacientes já
passaram pelo Programa de Controle ao Tabagismo nessa unidade? Qual o perfil
desse público?
Penha Uchoa — O Programa de Controle do Tabagismo do Hospital de Messejana
(PCT/HM) atende cerca de 40 novos pacientes a cada mês. Destes, a maioria é do
gênero feminino (65%), com idade média entre 47 a 50 anos, 90% iniciou
tabagismo antes dos 15 anos, e fumavam em média 33 maços por ano.
OP+ — Quais são as principais dificuldades que essas pessoas
apresentam ou enfrentam durante o processo de abandono do hábito e como o
programa ajuda a lidar com elas?
PU — Uma série de fatores dificultadores do processo da cessação
tabágica já está bem descrita na literatura e a nossa população não difere
nesse aspecto; a síndrome de abstinência é o principal deles, representa um
verdadeiro vilão que amedronta e desencoraja o fumante. Além disso, a elevada
dependência à nicotina, em especial naquele indivíduo que fuma um número grande
e frequente de cigarros na rotina diária. A motivação e auto eficácias baixas
também são identificadas em portadores de distúrbios psiquiátricos, pessoas com
baixos níveis socioeconômico e educacional para entender e aderir à nova
proposta de vida, após tentativas frustradas de cessação prévia; e portadores
de comorbidades pulmonares, câncer e cardiovasculares, que se sentem
constantemente pressionados pela família e sociedade. Pessoas cujo tratamento
intensivo e prolongado requer esforço adicional para a parada.
A equipe multiprofissional do Programa oferece a esses pacientes um
atendimento em grupo em que se discute os aspectos gerais do tabagismo como
doença, que se caracteriza por dependência física, comportamental e
psicológica, além da dependência nicotínica, da síndrome de abstinência e do
tratamento.
De posse do conhecimento a respeito da sua doença, o paciente é
encaminhado para uma escuta individual, em que a equipe utiliza algumas
ferramentas de motivação para que o fumante mantenha o foco no objetivo central
e mantenha o enfrentamento dessas dificuldades; deixando bem claro que ele é o
protagonista das ações necessárias da mudança de estilo de vida para se atingir
o sucesso sustentável, ou seja, que se torne um ex-fumante.
OP+ — Nos últimos anos os cigarros eletrônicos protagonizaram as
campanhas de combate ao tabagismo no Brasil e no mundo. Na prática do dia a dia
você observa que há uma crescente no uso desses dispositivos ou o que prevalece
é o cigarro comum? As redes sociais podem ter alguma influência nessa difusão
dos cigarros eletrônicos entre os jovens ou é algo que pode ser apontado como
geracional?
PU — Importante enfatizar que a comercialização, importação e
propaganda de todos os tipos de dispositivos eletrônicos para fumar são
proibidas no Brasil, por meio da resolução de diretoria colegiada da Anvisa
(RDC) nº 46, de 28 de agosto de 2009, em nível local também há proibição
através da Lei nº 17.760, de novembro de 2021.
Atualmente os cigarros eletrônicos (CE) são comercializados no
mundo em versões modernas e atrativas, contendo alta concentração de sal de
nicotina, para acelerar trânsito da nicotina ao SNC e potencializar a
dependência, além de substâncias com potencial inflamatório e cancerígeno, como
propileno glicol, glicerol; acetaldeído; formaldeído; metais; nitrosaminas;
saborizantes e flavorizantes que estimulam a experimentação e iniciação ao
fumo.
A possibilidade de manipular o cigarro com adição de várias outras
substâncias aumenta o risco futuro para dependência a outras drogas.
Apesar da proibição da propaganda e venda dos cigarros eletrônicos
no Brasil, ambas acontecem facilmente através de várias plataformas da
internet, festas alusivas ao uso dos vapes são divulgadas e propagadas de forma
avassaladora nas redes sociais, que contribuem para a disseminação rápida e
crescente do uso desses dispositivos, especialmente entre o público jovem.
Dados do estudo Covitel mostraram aumento da experimentação no
Brasil no primeiro trimestre de 2022, sendo 7% de uso ocasional e 2.2 % de uso
diário; destes, 20% se encontrava na faixa etária de 18 a 24 anos. Isto revela
que as pessoas estão fazendo uso ilegal, têm fácil acesso, mas ainda há
dificuldade para o consumo diário.
Esse cenário pode estar atrelado à questão do modismo do cigarro
eletrônico entre os mais jovens, curiosidade, sabor, cheiro e a percepção de
menor perigo.
Forte atração pelo design arrojado, mudanças frequentes de modelos, cores,
sabores e manipulação de componentes, reflexo das táticas da indústria para
oferecer tabaco de forma mais atrativa para esse público.
Impacto na saúde a curto prazo: há evidência conclusiva de risco
após exposição aguda: intoxicação; lesões de pele, queimaduras, inalação aguda
com consequente irritação da garganta, náuseas e tontura.
Há relatos de caso de bronquiolite aguda grave, surto de EVALI (lesão
pulmonar associada ao uso de cigarro eletrônico) caracterizada por sintomas
respiratórios agudos como tosse, dor torácica e dispneia que pode evoluir para
insuficiência respiratória aguda, associada ou não a dor abdominal, diarreia e
vômitos.
Em longo prazo, há evidência de risco para doenças crônicas não
transmissíveis como doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), doença arterial
coronariana (DAC) e câncer de pulmão.
Até o momento, não há evidência conclusiva do uso para a cessação
tabágica e risco maior de tabagismo dual. No meio ambiente os prejuízos estão
relacionados à produção de lixo não biodegradável, incêndios e poluição
tabágica ambiental, que é a principal causa de poluição intradomiciliar.
O impacto na saúde pública é bastante negativo, uma vez que o
aumento da experimentação e uso no Brasil trouxe à tona uma amostra de fumantes
com desenvolvimento de dependência mais rápida e mais elevada.
Esses dispositivos, em vez de aumentar a cessação tabágica, na
realidade, representam uma ponte para tabagismo dual (tabagismo convencional
adicionado ao eletrônico) ou, situação mais grave ainda, que é uso de múltiplas
drogas, poliadições.
Isso representa um retrocesso para a saúde pública brasileira que,
através de processos envolvendo o binômio educação e legislação, já conseguiu
avanços como a redução da prevalência tabágica de 35% no final da década de 80
para 10% em registros mais atuais.
OP+ — Alguém que fuma há cerca de 10 anos e resolve abandonar o
hábito ainda consegue restaurar a saúde do organismo ou diminuir as chances de
desenvolver doenças mais sérias? Quais os principais malefícios que essa pessoa
está evitando ao deixar o cigarro?
PU — Sempre é benéfico parar de fumar, em qualquer situação,
independente da idade. Porém é necessário que se entenda que se o paciente,
antes de parar de fumar, já apresenta alguma doença crônica associada ao
tabagismo, obviamente essa doença não tem cura, mas terá melhor prognóstico e o
paciente evolui com melhor qualidade de vida e sobrevida.
Por outro lado, se o indivíduo parar de fumar e não tiver contraído
ainda nenhuma doença crônica associada ao tabagismo, ele poderá evitar uma
série de doenças, especialmente do trato respiratório, sistema cardiovascular e
cânceres variados. Além de outras vantagens como melhora da autoestima; redução
ou cessação de crises de tosse, asma ou DPOC e redução de complicações
pós-operatórias.
No caso específico, a proteção de um indivíduo que para de fumar há
10 anos engloba vários aspectos; de 5 a 15 anos, o risco de AVC é reduzido ao
de um não fumante. Em 10 anos, a taxa de mortalidade por câncer de pulmão é
cerca de metade da de um fumante. Além disso, entre 10-15 anos, o risco de
doença cardíaca é igual ao de um não fumante.
O que ocorre no seu corpo se você parar de fumar?
OP+ — Como uma pessoa interessada em deixar de fumar pode buscar
serviços de saúde para auxiliar nesse processo? No caso do HM, qual é o
processo e que tratamento é oferecido a esses pacientes?
PU — As unidades básicas de saúde representam a principal porta de
entrada para o tratamento dos fumantes e devem ser capacitadas para tal.
O Hospital de Messejana atende usualmente e prioriza pacientes que
receberam alta das suas unidades de internação, aqueles com doenças pulmonares
ou cardiovasculares definidas, em especial o grupo que se encontra em fase
pré-operatória ou lista de transplante; e ainda oferece vagas para a população
geral durante as campanhas alusivas à comemoração dos dias mundial e nacional
de combate ao fumo.
O programa de controle do tabagismo do Hospital de Messejana segue
o tratamento padrão recomendado pelas diretrizes internacionais e nacionais,
que inclui a abordagem comportamental e a terapia medicamentosa.
Recomendações para quem deseja parar de fumar
Para tal, inicialmente, o paciente passa por uma avaliação médica
em que se registra seus dados pessoais, sintomas e queixas clínicas atuais,
presença de comorbidades, grau de dependência nicotínica, história tabágica
(tentativas de parar de fumar e uso de medicamentos previamente) e estágio de
motivação.
Caso esse paciente esteja preparado para a ação de parar de fumar,
ele será admitido no grupo de apoio e acompanhado por profissionais de saúde
habilitados para lidar com o processo da cessação tabágica.
O tratamento é dividido em dois módulos: o primeiro, com duração de
4 semanas, tem como objetivo principal a preparação para o dia D de parar de
fumar.
15 motivos para deixar de fumar
A partir da escolha desse dia, estratégias são criadas para se
afastar do comportamento habitual para fumar, como mudança do ambiente de casa
e do trabalho, se possível.
Nos momentos de fissura, o fumante deve tomar bastante líquido,
chupar gelo, mastigar algum alimento forte para combater a vontade de fumar
(gengibre, cravo, canela, etc.).
Essas ações acontecem em conjunto com o uso dos medicamentos, que
promovem o alívio da síndrome de abstinência e tornam possível o parar de fumar
com o menor sofrimento possível.
Na sequência, acontece o segundo módulo, cujo objetivo é a
prevenção da recaída e a percepção dos pequenos ganhos em curto prazo. Tem
duração média de 3 meses, que é um tempo mínimo para manutenção do tratamento
medicamentoso, utilizado para aliviar a abstinência.
Passado esse período, o paciente é revisto em momentos pontuais das
datas comemorativas que acontecem no próprio hospital e recebe alta com 1 ano,
quando se torna um ex-fumante.
OP+ — Existem estratégias específicas a depender do perfil de cada
paciente? O vício pode estar associado a questões de saúde mental que demandem
outras abordagens, por exemplo?
PU — O tabagismo é uma doença neuro comportamental e esse dado deve
ser incorporado durante a história tabágica. Os indivíduos que fumam tendem a
apresentar mais ansiedade, são mais impulsivos e apresentam mais traços de
neuroticismo, psicoticismo e histórico de distúrbios depressivos.
O conhecimento desses fatores psicológicos e/ou psiquiátricos
associados ao tabagismo são essenciais para uma melhor condução e
individualização do tratamento do fumante.
A estratégia do plano de ação para o dia D de parar de fumar segue
os mesmos passos de um paciente sem distúrbio psiquiátrico, porém é necessário
se avaliar o estado atual do paciente através de contato prévio com o médico
assistente, assim como também se avaliar as medicações em uso e possíveis
reações cruzadas ou contra indicações dos medicamentos que são utilizados para
a cessação tabágica.
Em virtude das peculiaridades dessa população, estudos mostram que
a duração do tratamento pode ser prolongada, além dos três meses padronizados.
Todo paciente precisa entender como a dependência nicotínica afeta
sua rotina e que mudanças a serem implementadas só acontecerão se houver a
consciência da escolha de um novo estilo de vida, mais saudável.
A parceria com a equipe de tratamento psiquiátrico/psicológico é
essencial para que se atinja o objetivo comum de parar de fumar.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 1/09/2024. Ciência &
Saúde. p.14-15.
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